sexta-feira, 9 de março de 2018

O Português português III


O OVO CRÚ




Ao continuar a minha leitura do Rufia, este exercício de hermenêutica e de adivinhação, exegese aclaratória do que teima em fugir a toda a claridade, vou colecionando os maneirismos e os despropósitos (se bem que comece a resistir â aplicação do conceito maneirista, porque afinal maneirismo é quase sempre acidente, ocorrência excecional, enquanto que neste português rufia é coisa constitucional, é doença, é cretinismo).

Ele é o carro que em vez de abrandar a marcha, modera o ronco; o dizer por gestos que se transforma em dizer por desenhos de mãos; o coveiro que se torna enterrador; a vontade de fazer xixi que vai de verter os sobejos líquidos até fazer caso da bexiga.

Achar chalaça em vez de achar graça?! Ó homem, chalaça é coisa objetiva, que não se acha, é! É coisa, res, acontecimento substantivo, enquanto que graça é qualidade subjetiva de coisa, modo, perspetiva pouco menos que adverbial. Chalaça é aquilo que é feito para achar graça.


Fazer urina aos pares? Urina fá-la o rim, e aos pares mija um português, ou mesmo três.


Abafava-se de pelica? Quem? O aldeão alentejano de princípios de século XX? Mas então? pelica (do latim pellicula)… ?! Não seria uma pele de carneiro de curtimenta caseira, esfolada e esfumada no pátio branco, de paredes caiadas, brancas?


E continuo, incapaz de parar o chorrilho avassalador, olhando a braseira que me enchia de ganas de…

“Aliviada da bexiga, tornou-se-lhe um peso nas bochechas por tão grande vergonha.”
Tornou-se-lhe? Vinha de trás? Ah! Não vinha! Mas tornar é próprio de uma coisa que volta, que regressa, e ia jurar que desde o princípio do Rufia não se lhe notara nada a pesar-lhe nas bochechas. Não lhe terá subido antes algum rubor, coisa encontradiça em casos de vergonha? Mas um peso, francamente! E logo nas bochechas…

“Quem visse ao longe tal carrada e tivesse imaginação para os cotejar…” O autor favorece reiteradamente a expressão que mais raramente ocorre, e rebusca estas palavras de fundo de arca, num delírio de erudição. Não lhe agradam comparações, prefere-lhes os cotejos. Não gosta de leilões, sentindo mais coisa sua as almoedas. E enfim, desconfia dos negócios e confortam-no os escambos.


Há casos em que estas preferências se rematam numa obscuridade que compromete a compreensão e torna a leitura enfadonha, com total prejuízo do encanto da língua e da musicalidade e leveza da escrita, arriscando afastar definitivamente dos livros os leitores iniciantes. Outras, menos graves, pura pedanteria, puros maneirismos cultistas, parecem feitas para as tardes maledicentes das tertúlias literárias, em que os tertulianos se divertem a abocanhar algum escritorzeco seco e peco, gabando-lhe as aselhices, como quando o Campaniço se lembra de descrever a aproximação de uma carroça que range sob a excessiva carga:

“Gritos de pedrinhas apertadas contra o chão e música de madeira sobrecarregada, anunciam a aproximação de um carro de bestas.” Carroça é que não é com ele, no mínimo carro de mula e o que realmente lhe assenta é carro de bestas. E as  pedrinhas apertadinhas aos gritinhos? Um achado de literatura!

“Ouviu-se um bom dia com simpatia de azemel.” Homessa! esta nem o Cândido de Figueiredo! O mais perto que me lembrava era azemeleiro, que era condutor de azémolas, almocreve e, claro, carroceiro. Esta não lembrava ao diabo.


Mas eram “horas de plantar pegadas no longo caminho”. Plantar pegadas? Em vez de percorrer? Coisas do plantio, coisas de regente agrícola, não haja dúvida.


Ocorre-me repentinamente se o Campaniço terá ajuda de algum programa de computador que o auxilie a complicar o português. Programa donde lhe venha o “carro brando de louças”, que suponho andaria devagar, para não fazer tudo em cacos; “o vicio carnudo do jogo”


E esta? Carnudo!? O vício do jogo? Isso parece-me mais coisa de onanismo, que também se entranha na carne, de pornografias…


“A espada arrojando pelo chão…”


Nem tudo é mau gosto. Boa parte é ignorância. Etimologicamente arrojando e rojando são equivalentes: vêm ambas do latim ad rotulare que quer dizer sair rodando e derivam do indoeuropeu ret ou roteh, pelo latim rota. Daqui evolui-se para arremessar, precipitar-se para a frente, atirar para diante (de onde arrojo ser sinónimo de coragem, sentido figurado de um ímpeto que roda imparável).
Contudo a palavra castelhana rodilla (joelho) tem a mesma etimologia, também deriva do latim rota, por rotella, e vir de rodillas é vir de joelhos ou de rojo, arrastar-se.
Assim, andar de rojo e rojar querem dizer a mesma coisa: arrastar-se pelo chão. Mas arrojar não. Todos nós, falantes das línguas ibéricas, verificamos quotidianamente que, apesar da mesma etimologia, os conteúdos de rojar e arrojar são não só diferentes como contrários. Um roja-se (pelo chão) outro arroja-se (aos ares). Um arrasta-se, outro lança-se.


O autor, incapaz de uma análise semiológica do que parece equivalente, ignora a nuance semântica, ainda que ela ocorra e se revele diariamente na linguagem corrente, e, no seu afã patético de originalidade, vai arrojando a espada que lambe (rojando) o chão.


Construir expressões que nunca ninguém tinha construído, absurdas, ou de uma erudição e complexidade espúrias, não passa de exercício pretensioso. Ainda se buscasse uma espécie de virgindade da intenção, ou de distanciamento, ou de transgressão, como nos casos da pintura automática ou da pintura de olhos vendados, mas o que busca é apenas a deferência perante o que parece difícil.


Mas a arte não é o terreno da dificuldade. É o terreno da difícil facilidade.


O Rufia é o exemplo acabado da escrita de mau gosto, enfadonha e ao mesmo tempo cheia de si, pedante e acrítica, escrita-disparate, escrita-toleima. E a leitura dos editores da Leya, ao escolherem a obra, fazem dela (e de si próprios), o “rei-vai-nu” das letras nacionais.

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