II - O Ovo Cozido
E aqui volto eu ao Campaniço, eloquente finalista do prémio Leya, não tanto para zurzi-lo e atacar de novo as suas indigências literárias, mas para aproveitar a prolixidade de exemplos que o seu Dom Rufia oferece e que me ajudarão a falar da nossa língua, tão bem escrita por Camões, por Camilo e por Eça, a par de outros que criaram páginas portuguesas sublimes, na conformidade das regras da língua, das regras universais da escrita e do bom gosto. Isto sim, é difícil.
Antes de entrar na continuação do meu anterior post sobre este tema - O Ovo Estrelado, permitam-me um aparte sobre o bom gosto.
O gosto é, por definição, uma coisa dotada de uma certa arbitrariedade. E digo de uma certa, porque invocamos com frequência o gosto de uma época, o gosto de uma classe, e por aí fora, quando invocamos o gosto do século XIX, o gosto burguês, o gosto clerical ou o gosto castrense. Invocações que nos dizem que o gosto é, afinal, menos arbitrário do que parece.
Por outro lado, o bom gosto sugere elevação, um padrão de fasquia alta que notabiliza (e enobrece) quem o exerce, num âmbito que eu definiria como de aristocracia intelectual, por oposição â vulgaridade, à vilania da falta de gosto. Algo que, definitivamente, depende da educação e da mundividência, se cultiva e refina, permitindo-nos adquirir habilidades e apurar capacidades na busca de formas de dizer, e estar, e ser, crescentemente requintadas e produzir criações crescentemente elegantes. Uma espécie de critério da sensibilidade, em busca de uma claridade da beleza e de uma imediatitude da fruição, quase musical, transparente e imponderável da mais etérea das qualidades.
O bom gosto é o gosto despojado do supérfluo, do ruído, que dispensa a cacofonia bastarrona, a hipérbole indigesta, o maneirismo pedante, a alegoria plebeia dos que buscam à viva força uma suposta diferença, uma saliência e um protagonismo empenachado, com uma fé despropositada e ultramontana em dizer o que nunca ninguém disse de uma maneira como nunca ninguém disse.
Posto isto, encetemos a segunda nota do Português português.
Passo a citar o último parágrafo do "Pedido de desculpa ao leitor" que serve de preâmbulo ao romance do Dr. Campaniço.
Por isso, prezado zelador dos bons costumes, leitor dedicado às coisas do credo e respeitador da ordem da morte, não me culpeis pela história que vos passo a narrar..., etc.
Sublinho duas expressões: as coisas do credo e a ordem da morte.
O que são as coisas do credo? Serão as palavras do Credo? "Cremos em um só Deus Todo-poderoso...", profissão de fé cristã, anuncio público de um proselitismo pessoal e coletivo (Cremos...) e proclamação de um Cristo da substância do Pai, criador de todas as coisas, gerado no ventre de uma virgem, feito carne pelo Espírito Santo e ressuscitado na sua dupla substância para julgar todos os homens? Proclamação de uma Igreja ela própria objeto de fé e proclamação ainda da remissão de todos os pecados pelo batismo e da crença na ressurreição e no reino vindouro e eterno de Cristo?
O autor não diz.
Dedicados às coisas do Credo são pois os leitores a quem o livro é dirigido. E, para além disso o leitor também é suposto ser respeitador da ordem da morte.
O que será o respeito pela ordem da morte? Respeito pela inevitabilidade da morte? Mas não creio que essa inevitabilidade seja credora do nosso respeito. Eu, pelo contrário, preferiria, em desespero de causa, e nesse último momento, escapar à sua ordem a um tempo saturniana e plutónica, a essa ordem inexorável do tempo e da anulação do eu-ipsum, a ordem da finitude da minha consciência-universo e ludibriar toda e qualquer ordem, faltando-lhe definitivamente ao respeito.
Ou a ordem da morte é essa ordem cardinal em que os mais velhos devem ir primeiro e em segundo os que na bicha vêm mais atrás? Pois prepare-se o leitor e inteire-se bem de quantos tem à sua frente, que então o Credo poderá ter uma outra aceção semântica, a de São Bento, a de Vade Retro Satanás ou a do cangalheiro para o infeliz marçano: credo, cruzes, Canhoto!
Quando comprarem um livro, sobretudo um prémio Leya, lembrem-se desta escrita original feita para não dizer nada, comprem antes uma caixa de chocolates e evitem o trabalho de adivinhar que o cálculo do ovário da gaulesa emplumada é... o ovo cozido.
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