segunda-feira, 27 de maio de 2019
A HUMANIDADE, A ANIMALIDADE E OS TOIROS
Não se sabe como foi o primeiro contacto do homem com o toiro, ou melhor, com o antepassado do toiro. Há grande probabilidade de terem morrido nesse contacto ou homens ou toiros, ou homens e...toiros, e digo no plural porque são ambos animais de manada.
Também pode ter acontecido que não tenha morrido homem nenhum, e que tenha morrido só um toiro, se chegava para matar a fome às famílias dos matadores.
O que sabemos é que durante muitos séculos, o “bos taurus”, que sempre foi herbívoro, veio a ser caçado por grande número de predadores, carnívoros ou omnívoros, desde os homens aos mabecos (na época não havia vegans, nem vegetarianos, e os xóxinhas, sub-espécie identificada por Oliveira Martins no seu Portugal Contemporâneo, que comem bifes às escondidas, tinham pouca visibilidade).
A partir de certa altura, não se sabe quando, a luta entre o homem e o toiro, já então um certo tipo de toiro, que não fugia quando acossado e ao qual a dor embravecia, passou a fazer parte dos festejos humanos. Sabe-se que em Creta, na Etrúria, e provavelmente em todos os territórios helénicos, continentais e insulares, há pelo menos 2500 anos, a luta dos homens com os toiros era uma constante em certas festas anuais que celebravam a perenidade da vida, a paternidade e a geração biológica,a renovação e, o que não é de estranhar, a virilidade e a competição, tão necessárias nesses tempos à perenidade da vida. Por isso a jogavam, enfrentando a morte, que lhe dá valor.
Esses festejos mantiveram-se no Império Romano e adquiriram matizes atávicos na Península Ibérica e na sua extensão transpirenaica, hoje atravessada pela autoestrada do Languedoque, “La Languedocienne”.
Muito cedo estas manifestações civilizacionais e culturais, preocuparam os poderes instituídos, em primeiro lugar porque eram populares, arreigadamente populares. E, nos tempos de Afonso X (século XIII) e de Isabel a Católica (século XV), não por morrerem muitos toiros, ou cavalos, mas por morrerem muitos homens.
Nesses tempos em que a humanidade ainda não rejeitava a sua animalidade instintiva e natural, a sua preocupação era maior com os vizinhos e iguais, do que com os desiguais do reino animal que a alimentavam, vestiam e calçavam, em pé de igualdade com o grão de semeadura e a floresta, recursos que não admitiam excepção, nem canídea nem gatídea, e que incluíam a sanguessuga e o mosquito (apreciados petiscos em certas zonas de África que os animalistas parecem, infundadamente, desprezar).
Perante a reacção popular aos constrangimentos da rainha fidelíssima que conquistou Granada e enviou Colombo sempre para Ocidente, comentou sua majestade com o Papa “que esto no es para mí a solas”, e ficou-se pela recusa de assistir a festejos sem que os toiros fossem previamente embolados, tornando assim a luta mais desvantajosa para o toiro.
Não temamos as palavras. A luta do toiro e do homem é uma luta bárbara. Quase tanto como a que opõe os mabecos à girafa, que é comida viva, pois os mabecos não têm outra maneira de a matar senão comendo-a.
A animalidade dos mabecos não sabe nada a respeito de matanças bárbaras, mas a nós, que achamos tanta graça e nos enternecemos com a pequena girafa com alguns dias de vida (os mabecos preferem as girafas bebés), fechamos os olhos com horror perante a barbaridade daquela morte sofrida dentada a dentada, até ao desmaio ou ao extertor final.
Mas não podemos negar ao mabeco o direito (?) de comer a girafa, a menos que consigamos persuadir o governo da Namíbia a investir numa dieta de Nestum para os mabecos.
As primeiras proibições dos festejos taurinos revelam sobretudo uma grande preocupação com o número de homens mortos. É preciso ver chegar a invenção dos peitos para os cavalos dos picadores, para se revelar uma clara preocupação com as mortes e o sofrimento dos animais na arena (dando de barato a enorme economia em cavalos que os peitos originaram).
Pouco depois de Isabel, em tempos do seu bisneto Filipe II, Pio V publicava a bula «De Salute Gregis» que excomungava os príncipes em cujos reinos se corriam toiros. Filipe II propôs aos seus cortesãos que se corressem vacas, para não susceptibilizar Sua Santidade e, vinte e nove anos depois (1596), Clemente VIII levantava as excomunhões na bula «Suscepti Numeris».
Durante este período de cerca de um século entre Isabel “Camisa Vieja” e Clemente VIII, o número de indios na América espanhola caiu de cerca de 50 milhões para oito milhões. O extermínio foi de tal forma bárbaro, que Bartolomé de las Casas voltou à Europa com o objectivo expresso de o denunciar e publicou em Sevilha um texto onde se poude ler: «...e outra coisa não fizeram [os espanhóis], desde há quarenta anos, senão despedaçá-los, matá-los, angustiá-los, afligi-los, atormentá-los e destruí-los [aos índios], através de variados actos de crueldade, estranhos e novos, nunca vistos, nem lidos, nem ouvidos.»
Ninguém evitou o genocídio de mais de 42 milhões de índios na América espanhola. Ninguém escreveu ao Papa. Nenhuma bula foi publicada, nem acto real, nem governamental, foi instituído para impedir o genocídio.
A morte, o fim de tudo, pareceu sempre ao homem coisa pouca, de que ele mal podia desfrutar. Era preciso empalar, se possível do ânus até à boca, crucificar, queimar vivo na fogueira, esquartejar, estirando os quatro membros cada um para seu lado até que se separassem do corpo, quebrar os ossos, dá-los a comer aos cães esfomeados. Mas primeiro cortar as mãos, cortar a língua, cortar o nariz e as orelhas, arrancar os olhos. Era preciso esfolar a vítima, porque o gozo de ver quantas horas aguentava sem pele não se pode descrever.
Sempre que os homens foram postos em situação de poder infligir estes suplícios impunemente, não hesitaram. A ajuda de uma justificação, por incrível que fosse, levava a orgia ao paroxismo, multiplicando-a até o cansaço ou a saciedade vencer a embriaguês, a volúpia e a excitação da crueldade desbragada.
E hoje, ou porque são curdos, e o agente laranja, ou o cloro ou o vírus do antrax os vai fazer estrebuchar, esvair-se em sangue, espernear, sufocar; ou porque são judeus, ou porque são arménios, ou porque são bósnios, ou porque são muçulmanos, ou porque são índios, ou porque são eslavos, ou pescadores de Diego Garcia, ou tutsis do Ruanda, ou xiitas, ou sunitas, ou cristãos coptas, ou iemenitas, tudo serve para legitimar e justificar que lhes envenenem a água, os sufoquem com gás, os passem à bala, os afoguem ou enterrem vivos em valas comuns.
Não estamos perante actos que visem garantir a sobrevivência dos seus autores, actos de legítima defesa ou que contribuam para a perenidade da geração, como o almoço dos mabecos, que para se manterem vivos despedaçam a pobre girafa, ou como o canibalismo das baratas (e dos homens) quando rareia o alimento, não estamos perante o triunfo do mais forte de que depende a saúde da espécie. Estamos perante o gozo humano, especificamente humano, que a crueldade proporciona.
Que levou ao extermínio de 23 milhões de índios norte-americanos, a tiro, à força de cobertores infectados com os vírus da varíola e da influenza, à fome, em marchas forçadas de milhares de quilómetros para reservas em áreas remotas de cujo clima não sabiam nem podiam defender-se. Sem que ninguém impedisse a matança.
Que levou os turcos a assassinarem milhão e meio de arménios, tendo as crianças sido umas inoculadas com tifo, outras afogadas no mar Negro ou queimadas vivas conjuntamente com as mães, outras, em escolas, injectadas com morfina ou intoxicadas com gás. Uma marcha forçada no deserto sírio, sem água nem alimentos, acabaria com o resto. Alguns, poucos, conseguiram refugiar-se em Jerusalém ou Beirute.
Que levou os sérvios a violar 40.000 mulheres bósnias e a matar mais 200.000 bósnios. Que levou o regime comunista de Pol Pot a exterminar um quarto da população do Camboja. Que levou, mal arrefeceram ainda os corpos, a trucidar dez por cento da população do Darfur. Sem que ninguém impedisse as matanças, mais de vinte séculos depois do general romano Marco Crasso ter executado 60.000 escravos e plantado, em um só dia, seis mil cruzes ao longo da via Ápia, entre Roma e Cápua, com seis mil escravos nelas pregados vivos. E apenas duzentos anos depois de 50 milhões de negros terem sido arrancados a África e vendidos como mercadorias, as mães separadas dos filhos, nas cidades do continente americano.
E enquanto os nossos deputados votam a almofada de velcro para pôr no lombo dos toiros e as bandarilhas de velcro para que a tauromaquia se transforme numa farsa de Hollyhood, 85.000 crianças com menos de cinco anos morreram nos últimos dias no Iémen e 2.200.000 outras aguardam a morte à razão ininterrupta de milhares em cada dia que passa.
“O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. A crueldade é ineliminável da vida humana.” Escrevia, no século XX, Edgar Morin no seu livro “Os Meus Demónios”.
É tempo de o homem deixar de ser cruel, dizem os civilizados, burgueses urbanos das metrópoles europeias, citadinos de elevada escolaridade que nunca viram um toiro no campo, nem mesmo uma galinha com penas, nem um bode com os chifres onde Deus lhos pôs. Bem pensantes educados a fugir das grande lutas, estes ignorantes doutores, que nunca conheceram as causas que sacrificam o bem-estar e a família, que sacrificam a carreira e a ginástica diária na academia do bairro, lamechas, xóxinhas que olham para o lado quando a aniquilação diária de milhões dos seus semelhantes lhes pede ajuda em altos brados, andam pelos gatis a fiscalizar a dieta dos simpáticos gatinhos, pelos canis a fiscalizar o espaço vital dos fidelissimos e meigos cãezinhos e pela Assembleia da República a ver como é que hão-de extinguir o nobre e altivo toiro bravo.
É tempo de o homem deixar de ser cuel dizem estes mentirosos. Dizem-no tão hipocritamente que andam a dizê-lo há dez mil anos, sem contudo terem avançado um passo, excepto na sujeição dos outros à sua própria mediocridade, que nivela por baixo, que nivela pela ignorância e pelos valores do ressentimento. São o caixa de óculos da classe, a miss palito do colégio, o gordo da aula, o gago que se desfez em cobardias e suportou todos os vexames sem contudo ser nunca aceite pelo grupo. Conheceram tão bem a crueldade que agora chegou a sua vez. As expressões assassinas e odiosas dos colegas que sovaram e supliciaram os pobres coitados, daqui para a frente serão as suas. A sanha, os ritos de crueldade, a volúpia de tornar mísero um infeliz colega que mal podia defender-se, só porque era estrábico, vesgo, tinha as pernas tortas, clamava por vingança, exigia uma resposta. Conduzidos pela crueldade dos outros a detestarem-se a si próprios, a detestarem tudo o que é afirmação de vida, estes castrados, marrecos do espírito, desprezadores de toda a afirmação vital, têm o pujante e viril toiro bravo e o admirador do toiro bravo no topo da sua lista de prioridades.
Mas precisam de aprender uma lição.
O homem é um animal cruel enquanto visa provocar o sofrimento e aniquilar o seu semelhante, enquanto tem como objecto embriagar-se desse sofrimento de que se nutrem o seu deleite e sua volúpia.
Por mais estranho que lhes pareça, o amante das corridas de toiros não necessita de ser cruel, nem sente nunca vontade de ser cruel. Mesmo não sendo filósofo, como Ortega y Gasset, catedrático da quarta mais velha universidade do Mundo, como Miguel de Unamuno, pintor como Goya ou Picasso, prémio Nobel como Hemingway ou Mário Vargas Llosa, para não citar Jorge Luís Borges, Camilo José Cela ou che Guevara.
O aficionado, o taurino e, mais ainda, o toureiro, limitam-se a ser animais bárbaros, para quem o sofrimento nunca é objectivo mas apenas tolerado e ainda assim limitado ao estritamente necessário. Na realidade ele limita-se a ser um animal bárbaro que liberta e sublima a sua barbaridade através da imolação catártica do toiro, e do risco, do desafio da morte do toureiro.
Repito, o sofrimento do toiro, tal como a morte do toureiro, não são nunca o objectivo. E sempre que por inépcia do contendor humano o toiro sofre uma provação desnecessária ou excessiva, o espectador taurino cobre o toureiro de impropérios e manda-o sair da arena, vaiado, assobiado, a toque do arremesso de almofadas.
O seu objectivo é o de participar na luta mágica do homem e do toiro, dominando a natureza na simbologia catártica do domínio do toiro e do desprezo da morte. Daí a defesa da verdade das hastes limpas e inteiras, daí a condenação da selecção comercial dos genes que amansam e embrutecem o toiro, daí o princípio taurino universal de dar sempre a vantagem ao toiro, esperando que tenha idade, que tenha poder, que seja terrorífico e infunda o mais profundo dos medos.
Não está na nossa mão dar-lhe a razão, arma letal tão demasiadamente humana, mas a avaliar pelos milhares de homens que ao longo da história da Europa encontraram a morte nos cornos de um toiro, este deve estar sempre longe, pela “fiereza” e pela bravura da acometida guerreira, do animalzinho indefeso que querem fazer dele. O toiro bravo é um animal criado exclusivamente para lutar com o homem, que não existiria sem essa finalidade e que desaparecerá no dia em que essa luta cessar. É ele que possibilita a libertação catártica de uma barbaridade humana que ninguém deseja ver virada contra outros homens, nem que se sublime enquanto crueldade.
A aceitação da barbaridade e da crueldade humanas supõe sentimentos distintos e estados racionais igualmente distintos. Aceitar a barbaridade humana que se sublima catarticamente pela corrida de toiros é opor-se à crueldade, é vencer o estigma indesejavelmente humano da crueldade.
Francisco Rodrigues Pereira
Vila Franca de Xira, 24 de Novembro de 2018
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