O OVO CRÚ
Ao continuar a minha leitura do Rufia, este exercício de
hermenêutica e de adivinhação, exegese aclaratória do que teima em fugir a toda
a claridade, vou colecionando os maneirismos e os despropósitos (se bem que
comece a resistir â aplicação do conceito maneirista, porque afinal maneirismo
é quase sempre acidente, ocorrência excecional, enquanto que neste português
rufia é coisa constitucional, é doença, é cretinismo).
Ele é o carro que em vez de abrandar a marcha, modera o ronco; o dizer por gestos que
se transforma em dizer por desenhos de
mãos; o coveiro que se torna enterrador;
a vontade de fazer xixi que vai de verter
os sobejos líquidos até fazer caso da
bexiga.
Achar chalaça em vez de achar graça?! Ó homem, chalaça é
coisa objetiva, que não se acha, é! É coisa, res, acontecimento substantivo, enquanto que graça é qualidade subjetiva
de coisa, modo, perspetiva pouco menos que adverbial. Chalaça é aquilo que é
feito para achar graça.
Fazer urina aos pares? Urina fá-la o rim, e aos pares mija
um português, ou mesmo três.
Abafava-se de pelica? Quem? O aldeão alentejano de
princípios de século XX? Mas então? pelica (do latim pellicula)… ?! Não seria uma pele de carneiro de curtimenta
caseira, esfolada e esfumada no pátio branco, de paredes caiadas, brancas?
E continuo, incapaz de parar o chorrilho avassalador,
olhando a braseira que me enchia de ganas de…
“Aliviada da bexiga,
tornou-se-lhe um peso nas bochechas por tão grande vergonha.”
Tornou-se-lhe? Vinha de trás? Ah! Não vinha! Mas tornar é
próprio de uma coisa que volta, que regressa, e ia jurar que desde o princípio
do Rufia não se lhe notara nada a pesar-lhe nas bochechas. Não lhe terá subido
antes algum rubor, coisa encontradiça em casos de vergonha? Mas um peso,
francamente! E logo nas bochechas…
“Quem visse ao longe
tal carrada e tivesse imaginação para os cotejar…” O autor favorece
reiteradamente a expressão que mais raramente ocorre, e rebusca estas palavras
de fundo de arca, num delírio de erudição. Não lhe agradam comparações,
prefere-lhes os cotejos. Não gosta de leilões, sentindo mais coisa sua as
almoedas. E enfim, desconfia dos negócios e confortam-no os escambos.
Há casos em que estas preferências se rematam numa
obscuridade que compromete a compreensão e torna a leitura enfadonha, com total
prejuízo do encanto da língua e da musicalidade e leveza da escrita, arriscando
afastar definitivamente dos livros os leitores iniciantes. Outras, menos
graves, pura pedanteria, puros maneirismos cultistas, parecem feitas para as
tardes maledicentes das tertúlias literárias, em que os tertulianos se divertem
a abocanhar algum escritorzeco seco e peco, gabando-lhe as aselhices, como
quando o Campaniço se lembra de descrever a aproximação de uma carroça que
range sob a excessiva carga:
“Gritos de pedrinhas
apertadas contra o chão e música de madeira sobrecarregada, anunciam a
aproximação de um carro de bestas.” Carroça é que não é com ele, no mínimo carro de mula e o que realmente lhe
assenta é carro de bestas. E as pedrinhas apertadinhas aos gritinhos? Um achado
de literatura!
“Ouviu-se um bom dia
com simpatia de azemel.” Homessa! esta nem o Cândido de Figueiredo! O mais
perto que me lembrava era azemeleiro, que era condutor de azémolas, almocreve
e, claro, carroceiro. Esta não lembrava ao diabo.
Mas eram “horas de
plantar pegadas no longo caminho”. Plantar pegadas? Em vez de percorrer? Coisas
do plantio, coisas de regente agrícola, não haja dúvida.
Ocorre-me repentinamente se o Campaniço terá ajuda de algum
programa de computador que o auxilie a complicar o português. Programa donde
lhe venha o “carro brando de louças”,
que suponho andaria devagar, para não fazer tudo em cacos; “o vicio carnudo do jogo”…
E esta? Carnudo!? O vício do jogo? Isso parece-me mais coisa
de onanismo, que também se entranha na carne, de pornografias…
“A espada arrojando
pelo chão…”
Nem tudo é mau gosto. Boa parte é ignorância.
Etimologicamente arrojando e rojando são equivalentes: vêm ambas do
latim ad rotulare que quer dizer sair
rodando e derivam do indoeuropeu ret
ou roteh, pelo latim rota. Daqui evolui-se para arremessar,
precipitar-se para a frente, atirar para diante (de onde arrojo ser sinónimo de
coragem, sentido figurado de um ímpeto que roda imparável).
Contudo a palavra castelhana rodilla (joelho) tem a mesma etimologia, também deriva do latim rota, por rotella, e vir de rodillas
é vir de joelhos ou de rojo, arrastar-se.Assim, andar de rojo e rojar querem dizer a mesma coisa: arrastar-se pelo chão. Mas arrojar não. Todos nós, falantes das línguas ibéricas, verificamos quotidianamente que, apesar da mesma etimologia, os conteúdos de rojar e arrojar são não só diferentes como contrários. Um roja-se (pelo chão) outro arroja-se (aos ares). Um arrasta-se, outro lança-se.
O autor, incapaz de uma análise semiológica do que parece
equivalente, ignora a nuance semântica, ainda que ela ocorra e se revele
diariamente na linguagem corrente, e, no seu afã patético de originalidade, vai
arrojando a espada que lambe (rojando) o chão.
Construir expressões que nunca ninguém tinha construído,
absurdas, ou de uma erudição e complexidade espúrias, não passa de exercício
pretensioso. Ainda se buscasse uma espécie de virgindade da intenção, ou de
distanciamento, ou de transgressão, como nos casos da pintura automática ou da
pintura de olhos vendados, mas o que busca é apenas a deferência perante o que
parece difícil.
Mas a arte não é o terreno da dificuldade. É o terreno da
difícil facilidade.
O Rufia é o exemplo acabado da escrita de mau gosto,
enfadonha e ao mesmo tempo cheia de si, pedante e acrítica, escrita-disparate,
escrita-toleima. E a leitura dos editores da Leya, ao escolherem a obra, fazem
dela (e de si próprios), o “rei-vai-nu” das letras nacionais.