Vou publicar um conjunto de textos com o tema "O Português Português". O primeiro foi publicado no Facebook em Dezembro de 2016. Os próximos serão publicados aqui.
I - O Ovo Estrelado
Os escritores do meu tempo, sobretudo os mais jovens, ainda que já consagrados pela publicação de quatro ou cinco livros, enfermam com demasiada frequência de um gravíssimo problema, filho de um impenitente casamento entre a ignorância e a vaidade: uma estranha falta de respeito pela linguagem escrita, essa parte da língua que é destinada aos escritores e que, conjuntamente com a linguagem dos falantes, constituem a língua na sua totalidade, num determinado momento da História.
Esta falta de respeito está relacionada com uma busca sem sentido de originalidade que os leva a reinventar as palavras, mudando-lhes o significado ou propondo-lhes novos conteúdos, alterando aquilo a que eu chamo a sua materialidade semiológica. Por exemplo, uma coluna de mármore não se esfarrapa, esboroa-se, parte-se, pulveriza-se em caso de bomba atómica. Mas não se esfarrapa, nem pela passagem dos milénios. Uma prancha de carvalho não se esgarça: apodrece, petrifica-se às vezes, abre rachas, fica carcomida das intempéries, esburacada do caruncho, carbonizada pela lava do Vesúvio, mas não se esgarça.
Esta proposta irracional de novos conteúdos é quase sempre atrabiliária, carente de fundamento, relevando de uma notável ignorância da semântica e de uma inabilidade para a língua escrita. Foi sem dúvida este e outros maneirismos que deram má fama à palavra retórica.
Causa a maior das perplexidades darmos pela quantidade de livros que algumas editoras de nomeada publicam a estes autores, que, do mesmo modo, inventam novas construções e relações sintácticas, novas modas e amaneiramentos, baralhando o lugar de cada grupo funcional na frase e no parágrafo, como se a construção dependesse do mero arbítrio individual, em busca de estilos nunca vistos, ou de uma estilística de mau gosto, sem regras ou com novas regras, pervertendo o que já está inventado, à custa, quase sempre, da compreensão plena e fácil da linguagem escrita, que se obscurece, da sua comunicabilidade e dos ritmos que o ouvido privilegiou ao longo dos tempos.
E tudo isto para serem diferentes e originais, não lhes bastando andarem de brinco na orelha, de piercing nos mamilos ou nos testículos, coisas que nos aborrecem infinitamente menos.
O resultado destas literaturas de trazer por casa, é um rebuscamento deselegante e feio, um estilo indigesto e pedante, um tanto ou quanto néscio, em que tentam fazer passar por desinibidas e modernas, formas de dizer mal sucedidas, desajeitadas, de uma possidonice que lhes deve parecer a eles, autores e editores, modernidade e desenvoltura.
E contudo, livreiros de postim, veja-se o grupo Leya, tendem a fixar-se nestes livrecos que uma eficiente distribuição torna moda e que vão assim formando o (mau) gosto das novas gerações.
Merecem ser invocados alguns exemplos, pelo ridículo e pela indigência. “Trazia o coração esfarrapado.” Pelos vistos os farrapos estão na moda. E eis aqui o supra-sumo da criação e da criatividade (desculpem escrever supra-sumo à angolana e à brasileira em vez do moderno suprassumo português que me causa cãibras).
Mas, meus caros, tal como os pés não doem quando lhes cai água-pesada em cima, o coração também não é coisa que se esfarrape. Rebenta, pára, pula, salta, parte-se, acelera, corre, titubeia e até gagueja às vezes, mas não se esfarrapa. Esfarrapar-se esfarrapam-se as camisas, as bandeiras e as mentiras e, se quiserem, no limite, os atletas, os toureiros e os ambiciosos que se esfarrapam todos para chegar à meta. Mas o coração não. Decididamente não se esfarrapa. Como um bloco de granito, que também não é coisa que se esfarrape, ainda que se possa pulverizar em caso de bomba atómica. É que esfarrapado e pulverizado, ou mesmo destroçado, estão longe de ser sinónimos, por mais destroçado que esteja um lençol quando se esfarrapa.
Mas, meus caros, tal como os pés não doem quando lhes cai água-pesada em cima, o coração também não é coisa que se esfarrape. Rebenta, pára, pula, salta, parte-se, acelera, corre, titubeia e até gagueja às vezes, mas não se esfarrapa. Esfarrapar-se esfarrapam-se as camisas, as bandeiras e as mentiras e, se quiserem, no limite, os atletas, os toureiros e os ambiciosos que se esfarrapam todos para chegar à meta. Mas o coração não. Decididamente não se esfarrapa. Como um bloco de granito, que também não é coisa que se esfarrape, ainda que se possa pulverizar em caso de bomba atómica. É que esfarrapado e pulverizado, ou mesmo destroçado, estão longe de ser sinónimos, por mais destroçado que esteja um lençol quando se esfarrapa.
Pois é exactamente isto que é escrever português. É perceber que um lençol fica destroçado quando se esfarrapa, mas um coração não fica esfarrapado quando se destroça. Fica destroçado.
Estes autores modernos estão tão cheios de si, na sua toleima ignorante, rebentando de um pretensiosismo tão descabido, que se recusam a aprender o quer que seja com Machado de Assis, ou Eça de Queirós, ou Camilo Castelo Branco, e entendem poder esvaziar as palavras dos seus conteúdos e atribuir-lhes os significados que querem, obrigando o leitor a decifrar e transformando a leitura numa hermenêutica divinatória que é para eles a prova acabada da excelência e do esoterismo iniciático e transcendente dos seus geniais e originalíssimos textos.
Há algum tempo ouvi a um repórter radiofónico que conduzia uma entrevista a determinado cantor cujas qualidades pretendia incensar, dizer-lhe que admirava “a sua personalidade caricata”. Espantei-me com o emprego da palavra “caricata”, cujo sentido me escapou. Com a continuação da entrevista percebi que o homem queria dizer que admirava a personalidade “invulgar” do outro, e como “caricata” tivesse uma sonoridade que lhe agradava, toca de a virar do avesso, esbulhá-la dos conteúdos negativos de “caricatura”, de onde deriva, da carga pejorativa de deformação brejeira ou torpe, mas intencional e crítica, do real, que constitui o seu único significado, e toca de a forrar com os novos conteúdos de “raro” e “acima do normal” que neste caso seriam apanágios da palavra “invulgar”. E esta, hem?
Veio-me parar faz alguns dias às mãos o exemplo acabado do que venho dizendo: o romance de Carlos Campaniço, autor finalista do Prémio Leya, filólogo acabado com estudos e livros publicados e prémios ganhos, “ As Viúvas de Dom Rufia”, editado pela Casa das Letras, chancela do grupo Leya.
Num estilo rebuscado até não poder ser mais (tomara ele ser gongórico!), Campaniço inunda-nos de alegorias, figuras de estilo mirabolantes, sentidos figurados contorcionistas, frases acrobáticas e quejandos parágrafos de circo literário. Ele é o “sapal de lágrimas”, ele é “crédulos” por “crentes”, como se fosse a mesma coisa, ele é o “céu murcho”, ele é a gente que “cornichava” à porta do defunto. O sol não queimava nem crestava, “gatanhava”. A porta não era “luxuosa” de ricos embutidos, ou talhas artísticas ou madeiras nobres. Era “luxuosa em buracos (talvez do caruncho, digo eu) e fabricos de aranha”, que suponho serem teias. O padre não tinha vontade de urinar, ou de fazer xixi, “fazia caso da bexiga”. E o falecido não estava morto, “tinha os ossos desempregados de vida”. E não se continha, seguia com o chorrilho de disparates, dois por parágrafo, até à página trezentos. O lenço não limpava as lágrimas, “aconchegava-lhes a comoção” e os automóveis eram “as máquinas abreviadoras dos caminhos”.
Despautérios tidos por literários pelo senhor Campanela? Não! Tidos por literários pelo júri do Prémio Leya. Pelos editores do grupo Leya. E, é claro, pelo senhor Campanita, ou Campaniço, que todos estes nomes são alegorias de sino que nem toca, nem tange, nem repica.
Despautérios tidos por literários pelo senhor Campanela? Não! Tidos por literários pelo júri do Prémio Leya. Pelos editores do grupo Leya. E, é claro, pelo senhor Campanita, ou Campaniço, que todos estes nomes são alegorias de sino que nem toca, nem tange, nem repica.
Meu Deus! o que deve custar escrever assim, de livrinho de sinónimos arrevesados ao lado. Uma pessoa de bem ter de chamar ao “ovo estrelado”, o “nutritivo goro do cantor da aurora”! Só na Leya. E no Campaniço.
Francisco Rodrigues Pereira
Vila Franca de Xira, Sábado, 24 de Dezembro de 2016
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