quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Abaixo os Pobres



A minha formação política data de uma época em que a ideologia estava na base dos alinhamentos partidários e das militâncias.
O lado esquerdo era fustigado pela maré dos vários marxismos. O marxismo-leninismo ortodoxo com os seus três ramos principais, estalinista, trotzquista e maoísta. O marxismo revisionista do PCUS e dos partidos comunistas europeus pós estalinistas, e o socialismo de inspiração marxista dos partidos socialistas, com destaque para o francês de “notre ami Mitterrand”.
À direita imperava a democracia cristã, sustentada pelo personalismo de Emmanuel Mounier, pelas encíclicas papais destilando bençãos do Concílio Vaticano II, e pelo humanismo tomista de Jacques Maritain. Quanto aos xenófobos, racistas convictos, elitistas e nacionalistas, minavam a coberto do anonimato, uma vez que a demasiado recente Guerra Mundial e o Holocausto aconselhavam uma prudente espera antes de se assumirem publicamente.
No meio, debaixo de um chapéu de chuva vagamente liberal, ou social-democrata ou social-outra-coisa-qualquer, sempre muito pouco democrata e ainda menos social, apareciam trabalhistas, partidos populares, democratas, liberais e neo-liberais, apostando no governo das oligarquias financeiras esclarecidas dos banqueiros e outros capitalistas, mais ou menos intermediadas por modelos e chavões de cariz tecnocrático, defendendo um estado mínimo, que o mercado, fonte de toda a riqueza e de toda a equidade, se encarregaria da justiça social, do acesso à educação e à saúde, e da sobrevivência dos velhos.
Claro está que o mercado não se encarregou de nada disso. Como seria de esperar, o mercado limitou-se a funcionar de acordo com a sua natureza e a sua regra fundamental: dinheiro chama dinheiro.
A história tem demonstrado à saciedade que nem é destino dos pobres enriquecerem, nem é destino dos ricos empobrecerem.
Nos anos que se seguiram à minha formação deixou de se ouvir falar de materialismo dialético,de idealismo, de personalismo, e deixou igualmente de se ouvir falar de comunismo, de socialismo, de liberalismo e de fascismo, a não ser quando se queria chamar filho de puta a alguém.
Vivemos, por fim, num caldo democrático. A América é uma democracia. A China é outra. Israel outra, o Japão outra e Angola outra. Cuba está para entrar no clube, e já há sinais de a Coreia do Norte poder vir a figurar, nos próximos meses, entre as grandes democracias asiáticas, as democracias do Brunei, das Filipinas e de Taiwan.
Escusado será dizer, que em todos estes países, quem manda é Salazar. Nos Estados Unidos os americanos podem votar em toda a gente, desde que toda a gente seja os dois candidatos, republicano não-democrata e democrata não-republicano, que o Golden Sachs e o Morgan Chase e mais umas dúzias de patriotas, imbuídos do mais genuino “american dream-yes we can”, lá põem para a rapaziada votar.
Na China os chineses podem votar em toda a gente, desde que toda a gente seja o líder do Partido Comunista chinês, ele próprio tão liberal, que não teve dúvidas em abraçar o comunismo capitalista. Resta-nos agora esperar que a Coreia proclame o capitalismo comunista, uma espécie de capitalismo de massas, em que todos somos capitalistas, mesmo sem capital, uma coisa assim como as quotas a realizar, sustentada pela mais alargada democracia.
E é bem verdade que há que enaltecer esta democracia, cada vez mais alargada, para uns inventada por Plutarco, para outros por João Sem-Terra e para outros por Robespierre, da qual as populações da Síria e do Iraque, do Curdistão e do Afeganistão, da Venezuela e de Moçambique, para não falar na República Centro-Africana, todos os dias colhem os benefícios.
Pois não foi ela que permitiu que Eduardo dos Santos, um guerrilheiro pobre,se tornasse um magnata da finança mundial, tal como permitiu a Al Capone abandonar a pobre barbearia de Brooklin e estabelecer-se na South Prairie Avenue, de Chicago?
Que um pobre judeu russo, filho de uma família que habitava um pequeno apartamento do Estado, tenha hoje um iate e um Boeing 767? E o Chelsea?
A democracia tem estas generosidades inegáveis que testemunham bem que todos, se quisermos, podemos ter Boeings estacionados no quintal. Além de permitir, magnanimamente, que os ricos fiquem mais ricos, ainda selecciona ao acaso uns quantos pobres para se lhes juntarem. Lucky Luciano, J. P. Morgan, Sergei Mikhailov, Mark Sachs, que antes de se juntar a Morgan era vendedor ambulante de géneros numa carrocinha puxada por um macho nas ruas de Filadélfia?
Pode assim dizer-se que, esgotadas as ideologias, vivemos num mundo pragmático onde quem tem unhas é que toca viola, isto é, quem é rico ou nasceu com essa sagacidade única de transferir a riqueza para si próprio, criando-a, a partir do nada, com o seu engenho e trabalho árduo.
De tal forma que hoje só consigo encontrar uma definição de esquerda, que quer que os pobres vivam um pouco menos mal, ainda que os ricos possam viver um pouco menos bem, e de direita, que quer que os ricos tenham cada vez mais, ainda que os pobres tenham cada vez menos.
Quanto ao centro, nestes tempos modernos, vive na ansiedade permanente de saber para que lado cair e evitar erros empobrecedores, e vão assim oscilando sem se apartarem nunca do grande desígnio que nos une a todos: eliminar os pobres, nem que seja a tiro.
Francisco Rodrigues Pereira
Vila Franca de Xira, 3 de Outubro de 2018

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A Cidade dos Mortos




Durante alguns anos da minha vida, vivi a noite de Lisboa com constância e com a circunspecção que distingue os iniciados dos “amadores”, a quem falta sempre, no mínimo, desenvoltura.
Na verdade, gastava parte importante dos meus dias, entre a meia-noite e as cinco da madrugada, em deambulações obrigatórias por alguns bares e cabarets da cidade.
Em todas essas casas tinha garrafa devidamente etiquetada com o meu nome, requisito iniciático indispensável, e mesa com localização panorâmica, de onde observava com minúcia o desenrolar da noite.
Excluindo as casas de Fado, a que apenas ia excepcionalmente, retenho dois bares e uma “boîte” que eram, na época de 70, catedrais maiores da religião noctívaga e que eu frequentava com disciplinada assiduidade.
O primeiro deles, o Procópio, tem funcionado ininterruptamente nas mãos da família Pinto Coelho, ainda que agora sem a Alice, a quem os anos já não aconselham tão intensas madrugadas, sem o Solnado, sem a Fernanda Lapa, o Aventino Teixeira, capitão de Abril sempre à esquerda de todas as revoluções, o Zé Cardoso Pires, a Teresa Ricou, a Maria do Céu Guerra, o Nuno Brederode, o Zé Fonseca e Costa, o Júlio Pomar. A maioria porque desapareceu, outros, poucos, porque os outros desapareceram e não está lá ninguém.
O António, o mais jovem dos indefectíveis diários do Procópio (eu repartia-me ecléticamente por demasiadas tertúlias), cartonista, capa da Time, dotado de uma mão de excepção, ali ia todos os dias complementar a sua aprendizagem da vida e da arte com aqueles burgueses divertidos e bem-pensantes, a quem um anti-salazarismo atávico dava um verniz de esquerdas vermelhas, mais berrantes umas que outras. Não podia deixar, António de te fazer esta referência, pelo merecimento devido e pela amizade de mais de meio século, que te dedico.
Nos dias em que o Procópio não me atraía e me apetecia casa mais desafogada, rumava a outro templo da noite lisboeta, abrilhantado pelas especiarias intelectuais da poesia simbolista, da literatura filosófica, no mesmo limbo onde até aí haviam pairado a George Sand, o André Gide e o Jean Cocteau, da grande música e da alta política, tudo envolto nuns matizes ora surrealistas, ora de esquerdas aristocráticas, ora de modernismos hedonistas, aos quais a madurez ia juntando sensualidades decadentes.
Estou a falar do Botequim, à esquerda de quem sobe, vindo da Sé, já entrando no Largo da Graça, colina sobranceira à cidade, vizinhança do Torel.
O Botequim foi fundado por um grupo de mulheres. Natália Correia e Isabel Meyrelles, escritoras já com créditos firmados na época, conjuntamente com Júlia Marenha e Helena Roseta.
Por ali andaram António Sérgio, José Augusto-França e Mário Cesariny. Espero que estes nomes digam alguma coisa às novas gerações, porque se tratavam na verdade de luminares da cultura e da sociedade portuguesa.
Em noites de maior frenesim revolucionário, aparecia o Grupo dos Nove, com Melo Antunes à cabeça. E iam o David Mourão-Ferreira, íntimo entre os íntimos, a Eunice Muñoz, a Isabel de Castro e o Victorino d’Almeida.
O inefável Dórdio Guimarães, aspirante a realizador de cinema, que tentava distraír Natália da sua infindável viuvez de um marido-amante-pai que criara o Hotel Britannia e a criara a ela, era, braço-dado com o velho pianista, decoração incontornável do Botequim.
Ao bar da Graça fui levado um dia pelo Ivo Batoréo, figura da Lisboa de setenta, que não era músico, nem escritor, nem tinha conversas herméticas e cultas, mas que conhecia toda a gente e a quem toda a gente conhecia, nas suas calças castanhas, blazer de tweed beige, mel ou camelo, escolhido pelas alfaiatarias do Largo de São Paulo nos figurinos da Old Bond Street, irrepreensívelmente escanhoado e engravatado. Era irmão do Manuel Batoréo, chefe da redacção do Diário de Notícias do reviralho, e foi um marco importante na minha vida e um bom amigo. Também lhe devo uma referência especial, não só pelos carapaus assados na Márcia Condessa e pelas noitadas com o Marceneiro e a Mimela Cid, mas pela disponibilidade fraternal da sua companhia.
Chegado aqui, é forçoso partilhar convosco a minha convicção de que entre os bares daquele tempo e os de hoje há claras diferenças, quer no seu carácter, quer na sua função.
Eventualmente algumas das diferenças serão de perspectiva - passaram quatro décadas e duas revoluções, a do 25 de Abril e a da internet/telemóvel, que nos permite enfiar o mundo no bolso das calças. E outras diferenças virão da minha vista cansada, da degeneração que nos vai minando quando nos tornamos velhos.
Tenho no entanto o sentimento de que os bares modernos são sitios onde se está sózinho, ou então com outros exactamente iguais a nós. Eu explico.
O primeiro caso não passa de um encontro semanal ou quinzenal, marcado com a música, ou com o ruído, com o alcoól ou com o ambiente, com o preconceito da saída obrigatória e com uma certa ideia de lazer ou de prémio. E para ali estão quatro, cinco, seis horas, sem falarem nem precisarem de falar. E passam ao lado de quaquer veleidade de comunicação, de qualquer encontro com os outros, com excepção dos intermediados pela internet ou pelo telemóvel, passam ao lado de toda a apreensão do mundo e de si próprios, que depende sobretudo do encontro dialético com os outros.
E os outros, com quem (não) se encontram, não passam de réplicas, cópias iguaizinhas entre as quais se perdem e se diluem, numa cacafonia de ecos e discos riscados que repetem uma cifra primitiva. Ilhas desertas. Nenhuma diferença. Clones que nada têm para dar ou trocar, como a infantaria estática de terracota do túmulo do imperador Qim. Claro, há excepções. Perdidas na construção de um mundo informático, de um mundo cibernético que faz a regra, do mundo dos seres que, com a ajuda de um telemóvel, definitivamente metem o cosmos, e o seu lugar no cosmos, dentro do bolso.
Os bares de que vos falo, pelo contrário, eram as catedrais da diferença, do único, do embate criador do dissemelhante e do oposto, do inimitável. Foruns da troca e da dádiva, da magia da criação e da recriação de projectos e de protagonismos, das interpretações afectivas da acção cívica e politica, abertas ou emparedadas na dialética do grupo, aprendizagens da intervenção e da conspiração, entroncamento e resguardo de comboios perdidos e porto de embarque para os recomeços e para as descobertas. Remansos de fraternidades e de amores. Aperfeiçoamentos. Buscas. Aventura.
No limite, praças inconsequentes de faz-de-conta que tornavam a felicidade possível e davam uma emoção de futuro ao mais miserável dos presentes.
Ao Botequim continuei a ir, fazer horas, ouvir conversas, discutir Deus e o Nada.
Antes de passar para uma outra dimensão da cidade nocturna e etílica (tenho estado aqui a lutar com o demonstrativo dionisíaco, que acho demasiado helénico para uma cidade tão varina e de beira-rio como Lisboa), devo fazer uma obrigatória referência a um grupo de frequentadores dos bares da “movida” política e intelectual do último quartel do meu século. O grupo dos escritores-publicitários.
Na herança do Fernando Pessoa e da sua intervenção na publicidade – o Zé da Hora (mais tarde McCann Erikson-Hora), acabara de ganhar a conta da Coca-Cola – que se celebrizou no slogan “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”, que por infeliz intervenção do médico Ricardo Jorge nunca viu a luz do dia, todos os escritores da moda eram publicitários e iam aos bares.
Artur Portela (filho), na Ciesa: “Expresso. O jornal dos que sabem ler”, ou Alexandre O’Neil, na Plano ou na Cinevoz: “Há mar e mar, há ir e voltar”, para o Instituto de Socorros a Náufragos “Passe um Verão desafogado”, e as que não viram a luz do dia “Bosch é brom!”, “Lusospuma. Dá três e parece que deu uma”, ou Ary dos Santos: “Kart. Quilómetros de prazer”, “Sagres. A sede que se deseja.”, e o Luís de Stau Monteiro, e o Baptista Bastos...
A alegre vibração da criatividade brejeira, agora no bar, em noitadas de malícia e de risadas, em noites de interminável bom-humor. (era preciso bom humor para aguentar aquela malta e frequentar aqueles bares).
Passemos então, como prometido no início desta crónica, à “boîte”, ou boate.
Não era um bar de alterne, que isso supõe um relação de subalternidade das mulheres com os donos da casa, nem era um Cabaret, que para isso faltavam as “Variedades”, ou o “Show”, como se diz agora. Era um bar de mulheres da noite, acompanhantes-atracções-clientes.
De uma classe de bares que houve em Lisboa a que pertenceram o Nina, o Comodoro, o Tamila, a Cave, o Madrid, a Cova da Onça, a Gata, a Pantera, o Elefante Branco, o Sampayo, o Night and Day, enfim a geração de bares que se seguiu ao Olimpia, ao Fontória, ao Bico Dourado, ao Bolero, ao Ritz, ao Príncipe Negro, ao Diana, ao Maxime, aos bares do Cais do Sodré, do Intendente e do Bairro Alto, estes últimos para marinheiros, ardinas, faias e rufias.
O Hipopótamo, porque é dele que se trata, era um bar de engate (não seriam eles todos?). Ao falar dos seus frequentadores, ou de alguns que com mais frequência me cruzei, corro o risco de imperdoável indiscrição. Até porque se tratava de gente conhecida, com ligações à minha terra natal. No entanto, e para afastar pensamentos precipitados, devo dizer que grande número dos frequentadores não procurava “meninas”, mas antes copos tardios, uma vez que os outros bares e os restaurantes fechavam mais cedo, e procuravam o ambiente licencioso típico do cabaret, com os lamês, os vestidos de noite, os perfumes, os charutos, o champagne, a orquestra e a sedução.
Os meus conterrâneos saíam de Vila Franca, do “Maioral” de outros tempos, já dada a meia-noite e depois de um jantar bem regado e rematado por umas garrafas de Highland Queen destemperado com água Castello, direitos à António Augusto de Aguiar, esquina com a Fontes Pereira de Melo.
O elemento mais irrequieto do grupo, tirando o Teles “Cigano”, recentemente falecido, que divertia toda a gente, na sua diferença étnica e na sua graça natural, era sem dúvida D. José Zarco da Câmara (Ribeira Grande), Zé Ribeira para os amigos, e, com eles, primeirissimas figuras da região, quase todos criadores de gado bravo e agricultores por tradição familiar, os manos Borba, Júlio e Guilherme, inesquecível vara do ribatejo o primeiro, e notável equitador e criador de cavalos lusitanos, competente director da Escola Portuguesa de Arte Equestre, o segundo. “Nico” Palha, bisneto do lendário ganadero Palha Blanco, Antònio Vidal, Jorge Cambournac Tomás da Costa, Rodrigo da Cunha Rêgo, Chico Patrício, D. Luís Cabral da Câmara (Belmonte), que morava então à Rodrigo da Fonseca, e que eu acompanhei em tantos copos de fim de tarde, com o Zé Guilherme Alves, da Universidade Moderna, o Francisco Martins, meu conterrâneo e amigo fraterno de aventuras galantes e etílicas, e um simpático director da Guerin, o Bandeira de Lima.
O Hipopótamo inspirou o meu romance “O Negresco”, pelo que não me vou alongar. Lembro com saudades o Zé Maria, o mais elegante dos porteiros que eu conheci. Nem os hotéis de Mayfair, nem Nice, nem Viena, se podem gabar de possuírem tão majestoso e distinto porteiro, que competia com o mais generoso dos clientes nas atenções das “meninas”. Lembro o solícito Joaquim que não tirava os olhos do meu copo e tinha por programa de vida a minha sede. Lembro os olhos verdes da Inês e os longos cabelos negros da Cláudia, que caíam em ondas sobre os ombros, espraiando-se como um manto pelas costas nuas.
A par destas três catedrais, recordo com gratidão duas ermidas menores que, à semelhança da capela da Senhora da Saúde, foram lugar de peregrinação obrigatório daLisboa do meu tempo.
O Stress, do Fernando Teixeira, esse que estão a pensar, o das análises da Rodrigues Sampaio, o Mestre-maçon da Grande Loja Regular de Portugal e o aficionado patrono das revistas taurinas falidas. A meio da Alexandre Herculano, quase pegado aos Bombeiros dos bailes das matinés de Domingo, vizinhança do Hotel Dom Carlos onde Francisco van Zeller Palha, o da Adema, tio bisavô do ganadero João Folque, tinha quarto ao ano.
Pelo Stress, comigo, com o Ivo e as namoradas da Praia das Maçãs, cirandavam a Ivone Silva, a Mariema, a Ana Zanatti, acabadinhas de chegar da segunda sessão do ABC ou do Variedades, o Badaró, os grandes galãs da noite, o capitão Quesada, comandante insubornável da Brigada de Trânsito, o “Quito” Hipólito Raposo, o Cristiano de Freitas, Director Geral de Turismo, que para desespero do Ivo media cobiçosamente a “Baroa” no Belcanto, ainda sem garfos Michelin nem novos-ricos a fazerem bicha para dar beijinho ao Avilez, o Zé Manuel Guerra do Correio da Manhã, o Alçada Baptista e o infeliz José Júlio Pelouro da Costa (Lanzudo), que havia de explorar o Paris-Orly e o Ibéria, ao Chiado, a caminho do Grémio Literário, onde a Maria Paula martelava o piano numas fúrias reaccionárias, acompanhando a Leninha Mexia e as cançonetas que emporcalhavam a revolução dos cravos, com as letras ainda mais reaccionárias do Fernandinho Teixeira, o mesmíssimo, o das análises, que ela cantava com o mais doce sotaque alentejano, aplaudida até à histeria pelo Pinto “Maluco”, comandante da Armada na reserva e agente barulhento da Direita Silenciosa, que haveria de casar com a Anita Montalvão, que envergonhava o canhão da Nazaré e tinha um fraquinho pela sopa da ex-mulher do maestro Tavares Belo.
Subsistem bares com os mesmos nomes, nos mesmos sítios. Mas estes, de que eu falo, já não existem. Desapareceram com o desaparecimento dos seus frequentadores, gente que neles vivia uma importante parte da sua vida, para alguns a mais importante, onde consumiam o génio e o talento que a vida lhes dera, feitos da comunicação, da intimidade, do devaneio, da fidelidade, numa experiência diáriamente renovada, que o bar, complacente, acolhia, repetida porque sim ou para se sentirem vivos.

quarta-feira, 28 de março de 2018


Ganadería Palha, da nobreza ao ridículo.


Embora as suas raízes gentílicas estivessem no Alentejo, para os lados da Vidigueira, onde o primeiro Palha patronimizou uma alcunha de família, corria-lhe nas veias sangue antigo, e bom, fixado no Ribatejo em tempos da dinastia de Bragança, sangue Faria. Na verdade, o pai de José Pereira Palha Blanco, era filho de um Faria Guião e de uma Faria de Lacerda, primos direitos. Ora os Farias, com o sangue, trouxeram a Palha Blanco, a Casa e terras em Vila Franca de Xira.

Pelo lado de um bisavô, vinha dos Azevedos Coutinho e dos Franças e Faro e, por eles, sangues muito remotos ligavam-no aos Trastâmara, que passaram pela cama de D. Teresa de Leão e Castela, mãe do nosso Afonso Henriques, e mais tarde pelo trono de Espanha, e ligavam-no ao rei Ordonho e a Ramiro II de Leão e ao Lidador, Senhor da Maia, para me ficar por aqui. Sangues fortes e velhos, forjados com têmperas de cavalarias antigas, como os Pereiras de Leça da Palmeira que haviam de dar um Condestável e acrescentar o apelido de família aos Palha.

José Pereira Palha Blanco, chamava-se pois este novo alferes dos campos de Vila Franca que Dom Carlos I crismou Rei dos Lavradores, e foi sobretudo a ele que se deveu o carácter lendário da “cabaña” Palha. Herdou uma ganadaria fera e bruta que enobreceu com vacas do Duque de Verágua e sementais das melhores cepas taurinas de Espanha. E a Espanha levou os seus toiros, que ganharam fama de terroríficos e, gabando-se das suas origens, competiram com toiros de Miura, de Urquijo, de Conde de la Corte e de Pablo Romero.

A mulher de José Pereira Palha Blanco, Maria Madalena, era, como ele, neta dos mesmos Farias, sendo assim sua prima direita e tão Palha quanto era possível. Seria pela mão de dois dos seus filhos, Constantino e Maria do Carmo, que o sangue holandês de João Jácome van Zeller consolidaria a entrada para a Casa das Areias, anos após o casamento de Francisco van Zeller com outra Maria do Carmo, desta feita Pereira Palha Osório Cabral, prima-irmã de José Pereira Palha Blanco e, também ela, uma Faria.

Descendente de morgados e fidalgos acrescentou o património com terras das duas lezírias, que haviam pertencido â Casa dos Infantes, à Casa do Comendador Estêvão de Oliveira e â do Marquês de Niza

Em Pancas pastariam as duquesas de Palha o pasto salgado que lhes duplicaria a “fiereza” do sangue e a vontade de acometer que, em 14 de Agosto de 1927, na ultima corrida de toiros de morte autorizada na Praça de Toiros Palha Blanco, em Vila Franca de Xira, lhes permitiu derribar uma meia.duzia de cavalos e secar a boca a Luís Freg, Fuentes Bejarano e Armillita Chico.

Noventa anos depois, em 2017, na tarde de 16 de Setembro, um toiro de Palha, “Asustado”, tomou três varas, arrancando-se dos médios na terceira e derribando ao primeiro encontro, com tal zelo acometeu o cavalo. O matador, Gomez del Pillar, recebeu-o com uma larga à “portagayola” e iniciou de joelhos a faena de muleta, demonstração cabal para aqueles que ainda acham que os Palha não se podem tourear. Embora não fosse do mesmo sangue do “Capote” que, em 24 de Junho de 1884, tomou 16 varas e matou nove cavalos em Santander, nem do “Tonelero” que foi castigado com 14 varas e que Guerrita estoqueou em La Coruña depois de matar sete cavalos, a responsabilidade do ferro deu-lhe a “fiereza” e a nós deu-nos a informação de que a ganadaria Palha continua a apresentar bons produtos.

Esta mesma ganadaria que se apresentou em Madrid em 1883, toureada pelas primeiras figuras da época – Fernando “El Gallo”, Bocanegra, Lagartijo, Frascuelo, é hoje uma mistura mal conhecida do que ficou mais Oliveiras e Irmãos, mais Torrealta, mais Baltasar Ibán e mais sabe-se lá mais o quê e, para meu grande desconsolo, seu orgulhoso conterrâneo, foi objecto de uma reportagem publicada no Facebook e no portal www.ToroAlcarria.com, em que esteve presente o ilustre ganadeiro João Folque que preside aos seus destinos. Nessa reportagem tive grande dificuldade em perceber entre o que é encómio disfarçado de chacota e o que é zombaria disfarçada de encómio. Passo a transcrever:

«Como curiosidad o anécdota, nos contó (João Folque) que el toro Fusilito no tenía rabo, pues de acercarse a las vallas y enredarse en los arbustos se quedo colín. El ganadero de Palha tenía una fe ciega en ese toro y debía ir a Madrid como fuese, aunque el problema de que no tuviese rabo podía que el toro no fuese embarcado.

Visitó una de las mejores profesionales de peluquería de mujeres de Portugal, y la propuso poner extensiones de pelo al rabo del toro.  Así accedió la peluquera que, por 250 euros, le puso rabo a Fusilito. Días antes de embarcarlo, debido a enganchones en el campo, otra vez tuvieron que repetir la sesión de peluquería.

Ahora entonces sabemos la razón por la que todo el mundo protestaba cuando los monosabios y subalternos se acercaban con el afán de colear al toro, pues temía que se quedasen con las extensiones del rabo del toro en la mano.

(,,,)

Los inventos del señor Joao Folque

Presente en la tertulia estaba el torero Javier Sánchez Vara, el torero de Pareja (Guadalajara) que mató la corrida de Palha del 12 de octubre de 2014 en Madrid. (…) El caso es que Sánchez Vara salió a la palestra porque es cómplice de los inventos del criador de toros Joao Folque. Durante el año pasado se dedicó a coger aquellos toros que destacaban en la corridas de rejones lidiados en Portugal (no hay muerte del toro en Portugal) y que después los echaba a las calles. Eran toros que traía de vuelta a la ganadería. Una vez allí son lidiados y puestos al caballo tantas veces como así lo exigía el ganadero. Después, con muchos “memolesSánchez Vara tiene el valor de ponerse delante de un toro de 550 kilos, corraleado, lidiado, recortado… y clavar los pies en la arena para sacarle 30 muletazos. Aquellos toros que pasan la prueba con nota son probados como sementales. El año pasado, de 17 toros que volvieron se quedó con 7, y de estos 3 serán probados para sementales.»


http://www.toroalcarria.com/escritos/futuro-ganaderia-palha/


E mais não digo.


28/03/2018

domingo, 25 de março de 2018

O Preconceito Democrático


A propósito do Dia do Pai os meus filhos ofereceram-me o livro “O Último Salazarista – A outra Face de Américo Thomaz” de Orlando Raimundo.

Fiquei muito feliz com a oferta, pois o Estado Novo, embora interessando-me menos que a revolução de 1383, que abriu caminho à burguesia, e, em última analise, deu voz aos Orlandos Raimundos deste mundo, corresponde à época da minha formação, posto que nasci em 1953.

Começa assim o capítulo introdutório do senhor Orlando Raimundo:

«Tal como acontece com o nome de Marcello Caetano, com dois ll, o apelido de Américo Thomaz, com th e z, sugere uma ascendência aristocrática que nunca existiu. A utilização da grafia inglesa em todos os documentos oficiais, primeiro requerida e depois exigida pelo próprio, é uma tentativa de dissimular a origem humilde, de que se envergonha e que sempre procurou esconder»

Ainda que o almirante Américo Tomás não tenha nunca despertado a minha admiração pessoal, tenho sempre imensa pena quando num escritor, sobretudo se candidato a historiador, o preconceito ideológico tolhe o raciocínio ou a exposição da verdade histórica, e o leva a fazer insinuações torpes que tresandam à pusilanimidade dos caracteres cobardes.

 Antes do Formulário Ortográfico de 1943, as palavras derivadas do grego grafadas com a letra Ө (teta) escreviam-se com th: Themudo, Esther, Thadeu, Theóphilo, athmosphera e… Thomaz, ou Thomás.

O Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, em 1913, grafava Thomás e Tomás. Entretanto, as Bases III e IV do referido Formulário Ortográfico de 1943 eliminaram o h.

Assim, o apelido de família constante do registo de nascimento, e consequentemente da Cédula pessoal e do Bilhete de Identidade de Américo de Deus Rodrigues Thomaz, foram admissivelmente grafadas com h, uma vez que anteriores a 1943.

 Quanto ao Z, sabe-se que nas palavras terminadas em az o a é sempre pronunciado aberto, como em, capataz, sagaz, primaz, perspicaz; nas terminadas em as, para que o a seja pronunciado aberto, é necessário acento agudo no a, como em ananás, aliás e aguarrás.

Assim, Ferraz, Forjaz, Monsaraz, Vaz, Queiroz, Berlioz, Badajoz, não precisam de acento para terem a vogal final aberta (ao contrário de Algés que se pronunciaria Algês se terminasse em z). Daí muita gente, ainda nos tempos actuais, decidir aplicar a grafia permitida e aceite Tomaz. Quanto à pretensa grafia inglesa, ela nunca foi Thomaz, com a vogal final tornada oxítona (aberta) pelo z, mas sim Thomas, com o a final átono (fechado).

Por último, esta pretensa veleidade aristocrática não se coaduna muito com a personalidade e origem humilde de Américo Thomaz, que ele nunca escondeu, ao contrário do que reclama o senhor Orlando Raimundo. Seu pai, António Rodrigues Thomaz, já tinha o seu nome igualmente grafado Thomaz, embora fosse criado de descendentes de João Rodrigues de Mattos e Silva, senhor da Casa Grande, em Abrantes, pelo que a grafia do nome e as veleidades genealógicas existirão apenas na cabeça deformada do autor do livro “O Último Salazarista – A outra Face de Américo Thomaz”, que talvez mudasse de bom grado o seu próprio nome para «Orllando Raimmundo».

Vila Franca de Xira, 26 de Março de 2018

sexta-feira, 9 de março de 2018

O Português português III


O OVO CRÚ




Ao continuar a minha leitura do Rufia, este exercício de hermenêutica e de adivinhação, exegese aclaratória do que teima em fugir a toda a claridade, vou colecionando os maneirismos e os despropósitos (se bem que comece a resistir â aplicação do conceito maneirista, porque afinal maneirismo é quase sempre acidente, ocorrência excecional, enquanto que neste português rufia é coisa constitucional, é doença, é cretinismo).

Ele é o carro que em vez de abrandar a marcha, modera o ronco; o dizer por gestos que se transforma em dizer por desenhos de mãos; o coveiro que se torna enterrador; a vontade de fazer xixi que vai de verter os sobejos líquidos até fazer caso da bexiga.

Achar chalaça em vez de achar graça?! Ó homem, chalaça é coisa objetiva, que não se acha, é! É coisa, res, acontecimento substantivo, enquanto que graça é qualidade subjetiva de coisa, modo, perspetiva pouco menos que adverbial. Chalaça é aquilo que é feito para achar graça.


Fazer urina aos pares? Urina fá-la o rim, e aos pares mija um português, ou mesmo três.


Abafava-se de pelica? Quem? O aldeão alentejano de princípios de século XX? Mas então? pelica (do latim pellicula)… ?! Não seria uma pele de carneiro de curtimenta caseira, esfolada e esfumada no pátio branco, de paredes caiadas, brancas?


E continuo, incapaz de parar o chorrilho avassalador, olhando a braseira que me enchia de ganas de…

“Aliviada da bexiga, tornou-se-lhe um peso nas bochechas por tão grande vergonha.”
Tornou-se-lhe? Vinha de trás? Ah! Não vinha! Mas tornar é próprio de uma coisa que volta, que regressa, e ia jurar que desde o princípio do Rufia não se lhe notara nada a pesar-lhe nas bochechas. Não lhe terá subido antes algum rubor, coisa encontradiça em casos de vergonha? Mas um peso, francamente! E logo nas bochechas…

“Quem visse ao longe tal carrada e tivesse imaginação para os cotejar…” O autor favorece reiteradamente a expressão que mais raramente ocorre, e rebusca estas palavras de fundo de arca, num delírio de erudição. Não lhe agradam comparações, prefere-lhes os cotejos. Não gosta de leilões, sentindo mais coisa sua as almoedas. E enfim, desconfia dos negócios e confortam-no os escambos.


Há casos em que estas preferências se rematam numa obscuridade que compromete a compreensão e torna a leitura enfadonha, com total prejuízo do encanto da língua e da musicalidade e leveza da escrita, arriscando afastar definitivamente dos livros os leitores iniciantes. Outras, menos graves, pura pedanteria, puros maneirismos cultistas, parecem feitas para as tardes maledicentes das tertúlias literárias, em que os tertulianos se divertem a abocanhar algum escritorzeco seco e peco, gabando-lhe as aselhices, como quando o Campaniço se lembra de descrever a aproximação de uma carroça que range sob a excessiva carga:

“Gritos de pedrinhas apertadas contra o chão e música de madeira sobrecarregada, anunciam a aproximação de um carro de bestas.” Carroça é que não é com ele, no mínimo carro de mula e o que realmente lhe assenta é carro de bestas. E as  pedrinhas apertadinhas aos gritinhos? Um achado de literatura!

“Ouviu-se um bom dia com simpatia de azemel.” Homessa! esta nem o Cândido de Figueiredo! O mais perto que me lembrava era azemeleiro, que era condutor de azémolas, almocreve e, claro, carroceiro. Esta não lembrava ao diabo.


Mas eram “horas de plantar pegadas no longo caminho”. Plantar pegadas? Em vez de percorrer? Coisas do plantio, coisas de regente agrícola, não haja dúvida.


Ocorre-me repentinamente se o Campaniço terá ajuda de algum programa de computador que o auxilie a complicar o português. Programa donde lhe venha o “carro brando de louças”, que suponho andaria devagar, para não fazer tudo em cacos; “o vicio carnudo do jogo”


E esta? Carnudo!? O vício do jogo? Isso parece-me mais coisa de onanismo, que também se entranha na carne, de pornografias…


“A espada arrojando pelo chão…”


Nem tudo é mau gosto. Boa parte é ignorância. Etimologicamente arrojando e rojando são equivalentes: vêm ambas do latim ad rotulare que quer dizer sair rodando e derivam do indoeuropeu ret ou roteh, pelo latim rota. Daqui evolui-se para arremessar, precipitar-se para a frente, atirar para diante (de onde arrojo ser sinónimo de coragem, sentido figurado de um ímpeto que roda imparável).
Contudo a palavra castelhana rodilla (joelho) tem a mesma etimologia, também deriva do latim rota, por rotella, e vir de rodillas é vir de joelhos ou de rojo, arrastar-se.
Assim, andar de rojo e rojar querem dizer a mesma coisa: arrastar-se pelo chão. Mas arrojar não. Todos nós, falantes das línguas ibéricas, verificamos quotidianamente que, apesar da mesma etimologia, os conteúdos de rojar e arrojar são não só diferentes como contrários. Um roja-se (pelo chão) outro arroja-se (aos ares). Um arrasta-se, outro lança-se.


O autor, incapaz de uma análise semiológica do que parece equivalente, ignora a nuance semântica, ainda que ela ocorra e se revele diariamente na linguagem corrente, e, no seu afã patético de originalidade, vai arrojando a espada que lambe (rojando) o chão.


Construir expressões que nunca ninguém tinha construído, absurdas, ou de uma erudição e complexidade espúrias, não passa de exercício pretensioso. Ainda se buscasse uma espécie de virgindade da intenção, ou de distanciamento, ou de transgressão, como nos casos da pintura automática ou da pintura de olhos vendados, mas o que busca é apenas a deferência perante o que parece difícil.


Mas a arte não é o terreno da dificuldade. É o terreno da difícil facilidade.


O Rufia é o exemplo acabado da escrita de mau gosto, enfadonha e ao mesmo tempo cheia de si, pedante e acrítica, escrita-disparate, escrita-toleima. E a leitura dos editores da Leya, ao escolherem a obra, fazem dela (e de si próprios), o “rei-vai-nu” das letras nacionais.

quinta-feira, 8 de março de 2018

O Português português.


II - O Ovo Cozido



E aqui volto eu ao Campaniço, eloquente finalista do prémio Leya, não tanto para zurzi-lo e atacar de novo as suas indigências literárias, mas para aproveitar a prolixidade de exemplos que o seu Dom Rufia oferece e que me ajudarão a falar da nossa língua, tão bem escrita por Camões, por Camilo e por Eça, a par de outros que criaram páginas portuguesas sublimes, na conformidade das regras da língua, das regras universais da escrita e do bom gosto. Isto sim, é difícil.
Antes de entrar na continuação do meu anterior post sobre este tema - O Ovo Estrelado, permitam-me um aparte sobre o bom gosto.
O gosto é, por definição, uma coisa dotada de uma certa arbitrariedade. E digo de uma certa, porque invocamos com frequência o gosto de uma época, o gosto de uma classe, e por aí fora, quando invocamos o gosto do século XIX, o gosto burguês, o gosto clerical ou o gosto castrense. Invocações que nos dizem que o gosto é, afinal, menos arbitrário do que parece.
Por outro lado, o bom gosto sugere elevação, um padrão de fasquia alta que notabiliza (e enobrece) quem o exerce, num âmbito que eu definiria como de aristocracia intelectual, por oposição â vulgaridade, à vilania da falta de gosto. Algo que, definitivamente, depende da educação e da mundividência, se cultiva e refina, permitindo-nos adquirir habilidades e apurar capacidades na busca de formas de dizer, e estar, e ser, crescentemente requintadas e produzir criações crescentemente elegantes. Uma espécie de critério da sensibilidade, em busca de uma claridade da beleza e de uma imediatitude da fruição, quase musical, transparente e imponderável da mais etérea das qualidades.
O bom gosto é o gosto despojado do supérfluo, do ruído, que dispensa a cacofonia bastarrona, a hipérbole indigesta, o maneirismo pedante, a alegoria plebeia dos que buscam à viva força uma suposta diferença, uma saliência e um protagonismo empenachado, com uma fé despropositada e ultramontana em dizer o que nunca ninguém disse de uma maneira como nunca ninguém disse.
Posto isto, encetemos a segunda nota do Português português.


Passo a citar o último parágrafo do "Pedido de desculpa ao leitor" que serve de preâmbulo ao romance do Dr. Campaniço.
Por isso, prezado zelador dos bons costumes, leitor dedicado às coisas do credo e respeitador da ordem da morte, não me culpeis pela história que vos passo a narrar..., etc.


Sublinho duas expressões: as coisas do credo e a ordem da morte.
O que são as coisas do credo? Serão as palavras do Credo? "Cremos em um só Deus Todo-poderoso...", profissão de fé cristã, anuncio público de um proselitismo pessoal e coletivo (Cremos...) e proclamação de um Cristo da substância do Pai, criador de todas as coisas, gerado no ventre de uma virgem, feito carne pelo Espírito Santo e ressuscitado na sua dupla substância para julgar todos os homens? Proclamação de uma Igreja ela própria objeto de fé e proclamação ainda da remissão de todos os pecados pelo batismo e da crença na ressurreição e no reino vindouro e eterno de Cristo?
O autor não diz.
Dedicados às coisas do Credo são  pois os leitores a quem o livro é dirigido. E, para além disso o leitor também é suposto ser respeitador da ordem da morte.
O que será o respeito pela ordem da morte? Respeito pela inevitabilidade da morte? Mas não creio que essa inevitabilidade seja credora do nosso respeito. Eu, pelo contrário, preferiria, em desespero de causa, e nesse último momento, escapar à sua ordem a um tempo saturniana e plutónica, a essa ordem inexorável do tempo e da anulação do eu-ipsum, a ordem da finitude da minha consciência-universo e ludibriar toda e qualquer ordem, faltando-lhe definitivamente ao respeito.
Ou a ordem da morte é essa ordem cardinal em que os mais velhos devem ir primeiro e em segundo os que na bicha vêm mais atrás? Pois prepare-se o leitor e inteire-se bem de quantos tem à sua frente, que então o Credo poderá ter uma outra aceção semântica, a de São Bento, a de Vade Retro Satanás ou a do cangalheiro para o infeliz marçano: credo, cruzes, Canhoto!


Quando comprarem um livro, sobretudo um prémio Leya, lembrem-se desta escrita original feita para não dizer nada, comprem antes uma caixa de chocolates e evitem  o trabalho de adivinhar que o cálculo do ovário da gaulesa emplumada é... o ovo cozido.