Durante alguns anos da minha vida, vivi a noite de Lisboa com constância e com a circunspecção que distingue os iniciados dos “amadores”, a quem falta sempre, no mínimo, desenvoltura.
Na verdade, gastava parte importante dos meus dias, entre a meia-noite e as cinco da madrugada, em deambulações obrigatórias por alguns bares e cabarets da cidade.
Em todas essas casas tinha garrafa devidamente etiquetada com o meu nome, requisito iniciático indispensável, e mesa com localização panorâmica, de onde observava com minúcia o desenrolar da noite.
Excluindo as casas de Fado, a que apenas ia excepcionalmente, retenho dois bares e uma “boîte” que eram, na época de 70, catedrais maiores da religião noctívaga e que eu frequentava com disciplinada assiduidade.
O primeiro deles, o Procópio, tem funcionado ininterruptamente nas mãos da família Pinto Coelho, ainda que agora sem a Alice, a quem os anos já não aconselham tão intensas madrugadas, sem o Solnado, sem a Fernanda Lapa, o Aventino Teixeira, capitão de Abril sempre à esquerda de todas as revoluções, o Zé Cardoso Pires, a Teresa Ricou, a Maria do Céu Guerra, o Nuno Brederode, o Zé Fonseca e Costa, o Júlio Pomar. A maioria porque desapareceu, outros, poucos, porque os outros desapareceram e não está lá ninguém.
O António, o mais jovem dos indefectíveis diários do Procópio (eu repartia-me ecléticamente por demasiadas tertúlias), cartonista, capa da Time, dotado de uma mão de excepção, ali ia todos os dias complementar a sua aprendizagem da vida e da arte com aqueles burgueses divertidos e bem-pensantes, a quem um anti-salazarismo atávico dava um verniz de esquerdas vermelhas, mais berrantes umas que outras. Não podia deixar, António de te fazer esta referência, pelo merecimento devido e pela amizade de mais de meio século, que te dedico.
Nos dias em que o Procópio não me atraía e me apetecia casa mais desafogada, rumava a outro templo da noite lisboeta, abrilhantado pelas especiarias intelectuais da poesia simbolista, da literatura filosófica, no mesmo limbo onde até aí haviam pairado a George Sand, o André Gide e o Jean Cocteau, da grande música e da alta política, tudo envolto nuns matizes ora surrealistas, ora de esquerdas aristocráticas, ora de modernismos hedonistas, aos quais a madurez ia juntando sensualidades decadentes.
Estou a falar do Botequim, à esquerda de quem sobe, vindo da Sé, já entrando no Largo da Graça, colina sobranceira à cidade, vizinhança do Torel.
O Botequim foi fundado por um grupo de mulheres. Natália Correia e Isabel Meyrelles, escritoras já com créditos firmados na época, conjuntamente com Júlia Marenha e Helena Roseta.
Por ali andaram António Sérgio, José Augusto-França e Mário Cesariny. Espero que estes nomes digam alguma coisa às novas gerações, porque se tratavam na verdade de luminares da cultura e da sociedade portuguesa.
Em noites de maior frenesim revolucionário, aparecia o Grupo dos Nove, com Melo Antunes à cabeça. E iam o David Mourão-Ferreira, íntimo entre os íntimos, a Eunice Muñoz, a Isabel de Castro e o Victorino d’Almeida.
O inefável Dórdio Guimarães, aspirante a realizador de cinema, que tentava distraír Natália da sua infindável viuvez de um marido-amante-pai que criara o Hotel Britannia e a criara a ela, era, braço-dado com o velho pianista, decoração incontornável do Botequim.
Ao bar da Graça fui levado um dia pelo Ivo Batoréo, figura da Lisboa de setenta, que não era músico, nem escritor, nem tinha conversas herméticas e cultas, mas que conhecia toda a gente e a quem toda a gente conhecia, nas suas calças castanhas, blazer de tweed beige, mel ou camelo, escolhido pelas alfaiatarias do Largo de São Paulo nos figurinos da Old Bond Street, irrepreensívelmente escanhoado e engravatado. Era irmão do Manuel Batoréo, chefe da redacção do Diário de Notícias do reviralho, e foi um marco importante na minha vida e um bom amigo. Também lhe devo uma referência especial, não só pelos carapaus assados na Márcia Condessa e pelas noitadas com o Marceneiro e a Mimela Cid, mas pela disponibilidade fraternal da sua companhia.
Chegado aqui, é forçoso partilhar convosco a minha convicção de que entre os bares daquele tempo e os de hoje há claras diferenças, quer no seu carácter, quer na sua função.
Eventualmente algumas das diferenças serão de perspectiva - passaram quatro décadas e duas revoluções, a do 25 de Abril e a da internet/telemóvel, que nos permite enfiar o mundo no bolso das calças. E outras diferenças virão da minha vista cansada, da degeneração que nos vai minando quando nos tornamos velhos.
Tenho no entanto o sentimento de que os bares modernos são sitios onde se está sózinho, ou então com outros exactamente iguais a nós. Eu explico.
O primeiro caso não passa de um encontro semanal ou quinzenal, marcado com a música, ou com o ruído, com o alcoól ou com o ambiente, com o preconceito da saída obrigatória e com uma certa ideia de lazer ou de prémio. E para ali estão quatro, cinco, seis horas, sem falarem nem precisarem de falar. E passam ao lado de quaquer veleidade de comunicação, de qualquer encontro com os outros, com excepção dos intermediados pela internet ou pelo telemóvel, passam ao lado de toda a apreensão do mundo e de si próprios, que depende sobretudo do encontro dialético com os outros.
E os outros, com quem (não) se encontram, não passam de réplicas, cópias iguaizinhas entre as quais se perdem e se diluem, numa cacafonia de ecos e discos riscados que repetem uma cifra primitiva. Ilhas desertas. Nenhuma diferença. Clones que nada têm para dar ou trocar, como a infantaria estática de terracota do túmulo do imperador Qim. Claro, há excepções. Perdidas na construção de um mundo informático, de um mundo cibernético que faz a regra, do mundo dos seres que, com a ajuda de um telemóvel, definitivamente metem o cosmos, e o seu lugar no cosmos, dentro do bolso.
Os bares de que vos falo, pelo contrário, eram as catedrais da diferença, do único, do embate criador do dissemelhante e do oposto, do inimitável. Foruns da troca e da dádiva, da magia da criação e da recriação de projectos e de protagonismos, das interpretações afectivas da acção cívica e politica, abertas ou emparedadas na dialética do grupo, aprendizagens da intervenção e da conspiração, entroncamento e resguardo de comboios perdidos e porto de embarque para os recomeços e para as descobertas. Remansos de fraternidades e de amores. Aperfeiçoamentos. Buscas. Aventura.
No limite, praças inconsequentes de faz-de-conta que tornavam a felicidade possível e davam uma emoção de futuro ao mais miserável dos presentes.
Ao Botequim continuei a ir, fazer horas, ouvir conversas, discutir Deus e o Nada.
Antes de passar para uma outra dimensão da cidade nocturna e etílica (tenho estado aqui a lutar com o demonstrativo dionisíaco, que acho demasiado helénico para uma cidade tão varina e de beira-rio como Lisboa), devo fazer uma obrigatória referência a um grupo de frequentadores dos bares da “movida” política e intelectual do último quartel do meu século. O grupo dos escritores-publicitários.
Na herança do Fernando Pessoa e da sua intervenção na publicidade – o Zé da Hora (mais tarde McCann Erikson-Hora), acabara de ganhar a conta da Coca-Cola – que se celebrizou no slogan “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”, que por infeliz intervenção do médico Ricardo Jorge nunca viu a luz do dia, todos os escritores da moda eram publicitários e iam aos bares.
Artur Portela (filho), na Ciesa: “Expresso. O jornal dos que sabem ler”, ou Alexandre O’Neil, na Plano ou na Cinevoz: “Há mar e mar, há ir e voltar”, para o Instituto de Socorros a Náufragos “Passe um Verão desafogado”, e as que não viram a luz do dia “Bosch é brom!”, “Lusospuma. Dá três e parece que deu uma”, ou Ary dos Santos: “Kart. Quilómetros de prazer”, “Sagres. A sede que se deseja.”, e o Luís de Stau Monteiro, e o Baptista Bastos...
A alegre vibração da criatividade brejeira, agora no bar, em noitadas de malícia e de risadas, em noites de interminável bom-humor. (era preciso bom humor para aguentar aquela malta e frequentar aqueles bares).
Passemos então, como prometido no início desta crónica, à “boîte”, ou boate.
Não era um bar de alterne, que isso supõe um relação de subalternidade das mulheres com os donos da casa, nem era um Cabaret, que para isso faltavam as “Variedades”, ou o “Show”, como se diz agora. Era um bar de mulheres da noite, acompanhantes-atracções-clientes.
De uma classe de bares que houve em Lisboa a que pertenceram o Nina, o Comodoro, o Tamila, a Cave, o Madrid, a Cova da Onça, a Gata, a Pantera, o Elefante Branco, o Sampayo, o Night and Day, enfim a geração de bares que se seguiu ao Olimpia, ao Fontória, ao Bico Dourado, ao Bolero, ao Ritz, ao Príncipe Negro, ao Diana, ao Maxime, aos bares do Cais do Sodré, do Intendente e do Bairro Alto, estes últimos para marinheiros, ardinas, faias e rufias.
O Hipopótamo, porque é dele que se trata, era um bar de engate (não seriam eles todos?). Ao falar dos seus frequentadores, ou de alguns que com mais frequência me cruzei, corro o risco de imperdoável indiscrição. Até porque se tratava de gente conhecida, com ligações à minha terra natal. No entanto, e para afastar pensamentos precipitados, devo dizer que grande número dos frequentadores não procurava “meninas”, mas antes copos tardios, uma vez que os outros bares e os restaurantes fechavam mais cedo, e procuravam o ambiente licencioso típico do cabaret, com os lamês, os vestidos de noite, os perfumes, os charutos, o champagne, a orquestra e a sedução.
Os meus conterrâneos saíam de Vila Franca, do “Maioral” de outros tempos, já dada a meia-noite e depois de um jantar bem regado e rematado por umas garrafas de Highland Queen destemperado com água Castello, direitos à António Augusto de Aguiar, esquina com a Fontes Pereira de Melo.
O elemento mais irrequieto do grupo, tirando o Teles “Cigano”, recentemente falecido, que divertia toda a gente, na sua diferença étnica e na sua graça natural, era sem dúvida D. José Zarco da Câmara (Ribeira Grande), Zé Ribeira para os amigos, e, com eles, primeirissimas figuras da região, quase todos criadores de gado bravo e agricultores por tradição familiar, os manos Borba, Júlio e Guilherme, inesquecível vara do ribatejo o primeiro, e notável equitador e criador de cavalos lusitanos, competente director da Escola Portuguesa de Arte Equestre, o segundo. “Nico” Palha, bisneto do lendário ganadero Palha Blanco, Antònio Vidal, Jorge Cambournac Tomás da Costa, Rodrigo da Cunha Rêgo, Chico Patrício, D. Luís Cabral da Câmara (Belmonte), que morava então à Rodrigo da Fonseca, e que eu acompanhei em tantos copos de fim de tarde, com o Zé Guilherme Alves, da Universidade Moderna, o Francisco Martins, meu conterrâneo e amigo fraterno de aventuras galantes e etílicas, e um simpático director da Guerin, o Bandeira de Lima.
O Hipopótamo inspirou o meu romance “O Negresco”, pelo que não me vou alongar. Lembro com saudades o Zé Maria, o mais elegante dos porteiros que eu conheci. Nem os hotéis de Mayfair, nem Nice, nem Viena, se podem gabar de possuírem tão majestoso e distinto porteiro, que competia com o mais generoso dos clientes nas atenções das “meninas”. Lembro o solícito Joaquim que não tirava os olhos do meu copo e tinha por programa de vida a minha sede. Lembro os olhos verdes da Inês e os longos cabelos negros da Cláudia, que caíam em ondas sobre os ombros, espraiando-se como um manto pelas costas nuas.
A par destas três catedrais, recordo com gratidão duas ermidas menores que, à semelhança da capela da Senhora da Saúde, foram lugar de peregrinação obrigatório daLisboa do meu tempo.
O Stress, do Fernando Teixeira, esse que estão a pensar, o das análises da Rodrigues Sampaio, o Mestre-maçon da Grande Loja Regular de Portugal e o aficionado patrono das revistas taurinas falidas. A meio da Alexandre Herculano, quase pegado aos Bombeiros dos bailes das matinés de Domingo, vizinhança do Hotel Dom Carlos onde Francisco van Zeller Palha, o da Adema, tio bisavô do ganadero João Folque, tinha quarto ao ano.
Pelo Stress, comigo, com o Ivo e as namoradas da Praia das Maçãs, cirandavam a Ivone Silva, a Mariema, a Ana Zanatti, acabadinhas de chegar da segunda sessão do ABC ou do Variedades, o Badaró, os grandes galãs da noite, o capitão Quesada, comandante insubornável da Brigada de Trânsito, o “Quito” Hipólito Raposo, o Cristiano de Freitas, Director Geral de Turismo, que para desespero do Ivo media cobiçosamente a “Baroa” no Belcanto, ainda sem garfos Michelin nem novos-ricos a fazerem bicha para dar beijinho ao Avilez, o Zé Manuel Guerra do Correio da Manhã, o Alçada Baptista e o infeliz José Júlio Pelouro da Costa (Lanzudo), que havia de explorar o Paris-Orly e o Ibéria, ao Chiado, a caminho do Grémio Literário, onde a Maria Paula martelava o piano numas fúrias reaccionárias, acompanhando a Leninha Mexia e as cançonetas que emporcalhavam a revolução dos cravos, com as letras ainda mais reaccionárias do Fernandinho Teixeira, o mesmíssimo, o das análises, que ela cantava com o mais doce sotaque alentejano, aplaudida até à histeria pelo Pinto “Maluco”, comandante da Armada na reserva e agente barulhento da Direita Silenciosa, que haveria de casar com a Anita Montalvão, que envergonhava o canhão da Nazaré e tinha um fraquinho pela sopa da ex-mulher do maestro Tavares Belo.
Subsistem bares com os mesmos nomes, nos mesmos sítios. Mas estes, de que eu falo, já não existem. Desapareceram com o desaparecimento dos seus frequentadores, gente que neles vivia uma importante parte da sua vida, para alguns a mais importante, onde consumiam o génio e o talento que a vida lhes dera, feitos da comunicação, da intimidade, do devaneio, da fidelidade, numa experiência diáriamente renovada, que o bar, complacente, acolhia, repetida porque sim ou para se sentirem vivos.
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