segunda-feira, 27 de maio de 2019

A HUMANIDADE, A ANIMALIDADE E OS TOIROS


Não se sabe como foi o primeiro contacto do homem com o toiro, ou melhor, com o antepassado do toiro. Há grande probabilidade de terem morrido nesse contacto ou homens ou toiros, ou homens e...toiros, e digo no plural porque são ambos animais de manada.

Também pode ter acontecido que não tenha morrido homem nenhum, e que tenha morrido só um toiro, se chegava para matar a fome às famílias dos matadores.

O que sabemos é que durante muitos séculos, o “bos taurus”, que sempre foi herbívoro, veio a ser caçado por grande número de predadores, carnívoros ou omnívoros, desde os homens aos mabecos (na época não havia vegans, nem vegetarianos, e os xóxinhas, sub-espécie identificada por Oliveira Martins no seu Portugal Contemporâneo, que comem bifes às escondidas, tinham pouca visibilidade).

A partir de certa altura, não se sabe quando, a luta entre o homem e o toiro, já então um certo tipo de toiro, que não fugia quando acossado e ao qual a dor embravecia, passou a fazer parte dos festejos humanos. Sabe-se que em Creta, na Etrúria, e provavelmente em todos os territórios helénicos, continentais e insulares, há pelo menos 2500 anos, a luta dos homens com os toiros era uma constante em certas festas anuais que celebravam a perenidade da vida, a paternidade e a geração biológica,a renovação e, o que não é de estranhar, a virilidade e a competição, tão necessárias nesses tempos à perenidade da vida. Por isso a jogavam, enfrentando a morte, que lhe dá valor.

Esses festejos mantiveram-se no Império Romano e adquiriram matizes atávicos na Península Ibérica e na sua extensão transpirenaica, hoje atravessada pela autoestrada do Languedoque, “La Languedocienne”.

Muito cedo estas manifestações civilizacionais e culturais, preocuparam os poderes instituídos, em primeiro lugar porque eram populares, arreigadamente populares. E, nos tempos de Afonso X (século XIII) e de Isabel a Católica (século XV), não por morrerem muitos toiros, ou cavalos, mas por morrerem muitos homens.

Nesses tempos em que a humanidade ainda não rejeitava a sua animalidade instintiva e natural, a sua preocupação era maior com os vizinhos e iguais, do que com os desiguais do reino animal que a alimentavam, vestiam e calçavam, em pé de igualdade com o grão de semeadura e a floresta, recursos que não admitiam excepção, nem canídea nem gatídea, e que incluíam a sanguessuga e o mosquito (apreciados petiscos em certas zonas de África que os animalistas parecem, infundadamente, desprezar).

Perante a reacção popular aos constrangimentos da rainha fidelíssima que conquistou Granada e enviou Colombo sempre para Ocidente, comentou sua majestade com o Papa “que esto no es para mí a solas”, e ficou-se pela recusa de assistir a festejos sem que os toiros fossem previamente embolados, tornando assim a luta mais desvantajosa para o toiro.

Não temamos as palavras. A luta do toiro e do homem é uma luta bárbara. Quase tanto como a que opõe os mabecos à girafa, que é comida viva, pois os mabecos não têm outra maneira de a matar senão comendo-a.

A animalidade dos mabecos não sabe nada a respeito de matanças bárbaras, mas a nós, que achamos tanta graça e nos enternecemos com a pequena girafa com alguns dias de vida (os mabecos preferem as girafas bebés), fechamos os olhos com horror perante a barbaridade daquela morte sofrida dentada a dentada, até ao desmaio ou ao extertor final.

Mas não podemos negar ao mabeco o direito (?) de comer a girafa, a menos que consigamos persuadir o governo da Namíbia a investir numa dieta de Nestum para os mabecos.

As primeiras proibições dos festejos taurinos revelam sobretudo uma grande preocupação com o número de homens mortos. É preciso ver chegar a invenção dos peitos para os cavalos dos picadores, para se revelar uma clara preocupação com as mortes e o sofrimento dos animais na arena (dando de barato a enorme economia em cavalos que os peitos originaram).

Pouco depois de Isabel, em tempos do seu bisneto Filipe II, Pio V publicava a bula «De Salute Gregis» que excomungava os príncipes em cujos reinos se corriam toiros. Filipe II propôs aos seus cortesãos que se corressem vacas, para não susceptibilizar Sua Santidade e, vinte e nove anos depois (1596), Clemente VIII levantava as excomunhões na bula «Suscepti Numeris».

Durante este período de cerca de um século entre Isabel “Camisa Vieja” e Clemente VIII, o número de indios na América espanhola caiu de cerca de 50 milhões para oito milhões. O extermínio foi de tal forma bárbaro, que Bartolomé de las Casas voltou à Europa com o objectivo expresso de o denunciar e publicou em Sevilha um texto onde se poude ler: «...e outra coisa não fizeram [os espanhóis], desde há quarenta anos, senão despedaçá-los, matá-los, angustiá-los, afligi-los, atormentá-los e destruí-los [aos índios], através de variados actos de crueldade, estranhos e novos, nunca vistos, nem lidos, nem ouvidos.»

Ninguém evitou o genocídio de mais de 42 milhões de índios na América espanhola. Ninguém escreveu ao Papa. Nenhuma bula foi publicada, nem acto real, nem governamental, foi instituído para impedir o genocídio.

A morte, o fim de tudo, pareceu sempre ao homem coisa pouca, de que ele mal podia desfrutar. Era preciso empalar, se possível do ânus até à boca, crucificar, queimar vivo na fogueira, esquartejar, estirando os quatro membros cada um para seu lado até que se separassem do corpo, quebrar os ossos, dá-los a comer aos cães esfomeados. Mas primeiro cortar as mãos, cortar a língua, cortar o nariz e as orelhas, arrancar os olhos. Era preciso esfolar a vítima, porque o gozo de ver quantas horas aguentava sem pele não se pode descrever.

Sempre que os homens foram postos em situação de poder infligir estes suplícios impunemente, não hesitaram. A ajuda de uma justificação, por incrível que fosse, levava a orgia ao paroxismo, multiplicando-a até o cansaço ou a saciedade vencer a embriaguês, a volúpia e a excitação da crueldade desbragada.

E hoje, ou porque são curdos, e o agente laranja, ou o cloro ou o vírus do antrax os vai fazer estrebuchar, esvair-se em sangue, espernear, sufocar; ou porque são judeus, ou porque são arménios, ou porque são bósnios, ou porque são muçulmanos, ou porque são índios, ou porque são eslavos, ou pescadores de Diego Garcia, ou tutsis do Ruanda, ou xiitas, ou sunitas, ou cristãos coptas, ou iemenitas, tudo serve para legitimar e justificar que lhes envenenem a água, os sufoquem com gás, os passem à bala, os afoguem ou enterrem vivos em valas comuns.

Não estamos perante actos que visem garantir a sobrevivência dos seus autores, actos de legítima defesa ou que contribuam para a perenidade da geração, como o almoço dos mabecos, que para se manterem vivos despedaçam a pobre girafa, ou como o canibalismo das baratas (e dos homens) quando rareia o alimento, não estamos perante o triunfo do mais forte de que depende a saúde da espécie. Estamos perante o gozo humano, especificamente humano, que a crueldade proporciona.

Que levou ao extermínio de 23 milhões de índios norte-americanos, a tiro, à força de cobertores infectados com os vírus da varíola e da influenza, à fome, em marchas forçadas de milhares de quilómetros para reservas em áreas remotas de cujo clima não sabiam nem podiam defender-se. Sem que ninguém impedisse a matança.

Que levou os turcos a assassinarem milhão e meio de arménios, tendo as crianças sido umas inoculadas com tifo, outras afogadas no mar Negro ou queimadas vivas conjuntamente com as mães, outras, em escolas, injectadas com morfina ou intoxicadas com gás. Uma marcha forçada no deserto sírio, sem água nem alimentos, acabaria com o resto. Alguns, poucos, conseguiram refugiar-se em Jerusalém ou Beirute.

Que levou os sérvios a violar 40.000 mulheres bósnias e a matar mais 200.000 bósnios. Que levou o regime comunista de Pol Pot a exterminar um quarto da população do Camboja. Que levou, mal arrefeceram ainda os corpos, a trucidar dez por cento da população do Darfur. Sem que ninguém impedisse as matanças, mais de vinte séculos depois do general romano Marco Crasso ter executado 60.000 escravos e plantado, em um só dia, seis mil cruzes ao longo da via Ápia, entre Roma e Cápua, com seis mil escravos nelas pregados vivos. E apenas duzentos anos depois de 50 milhões de negros terem sido arrancados a África e vendidos como mercadorias, as mães separadas dos filhos, nas cidades do continente americano.

E enquanto os nossos deputados votam a almofada de velcro para pôr no lombo dos toiros e as bandarilhas de velcro para que a tauromaquia se transforme numa farsa de Hollyhood, 85.000 crianças com menos de cinco anos morreram nos últimos dias no Iémen e 2.200.000 outras aguardam a morte à razão ininterrupta de milhares em cada dia que passa.

“O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. A crueldade é ineliminável da vida humana.” Escrevia, no século XX, Edgar Morin no seu livro “Os Meus Demónios”.

É tempo de o homem deixar de ser cruel, dizem os civilizados, burgueses urbanos das metrópoles europeias, citadinos de elevada escolaridade que nunca viram um toiro no campo, nem mesmo uma galinha com penas, nem um bode com os chifres onde Deus lhos pôs. Bem pensantes educados a fugir das grande lutas, estes ignorantes doutores, que nunca conheceram as causas que sacrificam o bem-estar e a família, que sacrificam a carreira e a ginástica diária na academia do bairro, lamechas, xóxinhas que olham para o lado quando a aniquilação diária de milhões dos seus semelhantes lhes pede ajuda em altos brados, andam pelos gatis a fiscalizar a dieta dos simpáticos gatinhos, pelos canis a fiscalizar o espaço vital dos fidelissimos e meigos cãezinhos e pela Assembleia da República a ver como é que hão-de extinguir o nobre e altivo toiro bravo.

É tempo de o homem deixar de ser cuel dizem estes mentirosos. Dizem-no tão hipocritamente que andam a dizê-lo há dez mil anos, sem contudo terem avançado um passo, excepto na sujeição dos outros à sua própria mediocridade, que nivela por baixo, que nivela pela ignorância e pelos valores do ressentimento. São o caixa de óculos da classe, a miss palito do colégio, o gordo da aula, o gago que se desfez em cobardias e suportou todos os vexames sem contudo ser nunca aceite pelo grupo. Conheceram tão bem a crueldade que agora chegou a sua vez. As expressões assassinas e odiosas dos colegas que sovaram e supliciaram os pobres coitados, daqui para a frente serão as suas. A sanha, os ritos de crueldade, a volúpia de tornar mísero um infeliz colega que mal podia defender-se, só porque era estrábico, vesgo, tinha as pernas tortas, clamava por vingança, exigia uma resposta. Conduzidos pela crueldade dos outros a detestarem-se a si próprios, a detestarem tudo o que é afirmação de vida, estes castrados, marrecos do espírito, desprezadores de toda a afirmação vital, têm o pujante e viril toiro bravo e o admirador do toiro bravo no topo da sua lista de prioridades.

Mas precisam de aprender uma lição.
O homem é um animal cruel enquanto visa provocar o sofrimento e aniquilar o seu semelhante, enquanto tem como objecto embriagar-se desse sofrimento de que se nutrem o seu deleite e sua volúpia.

Por mais estranho que lhes pareça, o amante das corridas de toiros não necessita de ser cruel, nem sente nunca vontade de ser cruel. Mesmo não sendo filósofo, como Ortega y Gasset, catedrático da quarta mais velha universidade do Mundo, como Miguel de Unamuno, pintor como Goya ou Picasso, prémio Nobel como Hemingway ou Mário Vargas Llosa, para não citar Jorge Luís Borges, Camilo José Cela ou che Guevara.

O aficionado, o taurino e, mais ainda, o toureiro, limitam-se a ser animais bárbaros, para quem o sofrimento nunca é objectivo mas apenas tolerado e ainda assim limitado ao estritamente necessário. Na realidade ele limita-se a ser um animal bárbaro que liberta e sublima a sua barbaridade através da imolação catártica do toiro, e do risco, do desafio da morte do toureiro.

Repito, o sofrimento do toiro, tal como a morte do toureiro, não são nunca o objectivo. E sempre que por inépcia do contendor humano o toiro sofre uma provação desnecessária ou excessiva, o espectador taurino cobre o toureiro de impropérios e manda-o sair da arena, vaiado, assobiado, a toque do arremesso de almofadas.

O seu objectivo é o de participar na luta mágica do homem e do toiro, dominando a natureza na simbologia catártica do domínio do toiro e do desprezo da morte. Daí a defesa da verdade das hastes limpas e inteiras, daí a condenação da selecção comercial dos genes que amansam e embrutecem o toiro, daí o princípio taurino universal de dar sempre a vantagem ao toiro, esperando que tenha idade, que tenha poder, que seja terrorífico e infunda o mais profundo dos medos.

Não está na nossa mão dar-lhe a razão, arma letal tão demasiadamente humana, mas a avaliar pelos milhares de homens que ao longo da história da Europa encontraram a morte nos cornos de um toiro, este deve estar sempre longe, pela “fiereza” e pela bravura da acometida guerreira, do animalzinho indefeso que querem fazer dele. O toiro bravo é um animal criado exclusivamente para lutar com o homem, que não existiria sem essa finalidade e que desaparecerá no dia em que essa luta cessar. É ele que possibilita a libertação catártica de uma barbaridade humana que ninguém deseja ver virada contra outros homens, nem que se sublime enquanto crueldade.

A aceitação da barbaridade e da crueldade humanas supõe sentimentos distintos e estados racionais igualmente distintos. Aceitar a barbaridade humana que se sublima catarticamente pela corrida de toiros é opor-se à crueldade, é vencer o estigma indesejavelmente humano da crueldade.

Francisco Rodrigues Pereira
Vila Franca de Xira, 24 de Novembro de 2018

A CASA DO LARGO - I CAPÍTULO - O Largo


Nasci às onze e meia de uma manhã luminosa e quente. Era segunda-feira, 6 de Julho de 1953 do calendário gregoriano e 5714 do calendário hebreu. Ano cheio de acontecimentos. Ano da vacina da poliomielite, da morte de Estaline e da publicação do livro do comandante Cousteau “O Mundo do Silêncio”, anos depois levado ao cinema e premiado com a Palma de Ouro de Cannes e um Óscar de Hollywood. Ano da descoberta da estrutura do ADN, da criação de James Bond, da conquista do Everest, da coroação de Isabel II, do fim da guerra da Coreia, do primeiro número da Playboy, da execução do casal Rosenberg. Ano em que o Sporting ganhou o campeonato nacional de futebol.

A minha mãe sentara-se pouco antes ao pé de uma das janelas que davam para a praça central, o Largo dos Paços do Concelho, esperando que as contracções apertassem e que a parteira chegasse, enquanto se distraía com os passantes habituais. Pôs-me neste mundo com a facilidade que a conformação generosa das suas ancas e os meus quatro quilos e pouco permitiram.
Fui de imediato abraçado por mais de uma vintena de parentes que viviam nas proximidades, os avós maternos, muitas tias e tios, muitos primos, e a Maria, a criada velha que há em todas as casas de sangue velho e me levaria à pia baptismal.
Na família, para além dos meus pais, de uma irmã de meu pai e de uns primos segundos, ou quintos, eram quase todos gente de muita idade, tios e tias avós e bisavós, primos e primas entrados em anos. Estava separado da quase totalidade dos meus parentes mais próximos por uns bons sessenta anos. A minha infância e a adolescência foram passadas a vê-los morrer, um após o outro.
A tia Berta, irmã do bisavô Júlio, foi a primeira. Depois o tio Augusto, o tio Raul, a tia Joaquina, a avó Luísa, a prima Ilda, o primo Abel, a prima Otília, e a minha avó de adopção, a “avó” Argentina.
Prima direita do meu avô materno, ajudara a criar a minha mãe e afeiçoara-se-lhe maternalmente. E aos dois anos a minha mãe era já residente definitiva em casa da Argentina, a casa do largo.
Sua segunda e nova mãe, e minha avó, minha verdadeira avó e minha madrinha de crisma, a Argentina. E talvez a grande prosopopeia da minha vida. Sempre presente, sempre de atalaia, a extasiar-se com o menor dos meus sorrisos ou dos meus suspiros, personificando todas as grandes aspirações que o mundo me destinava, numa avalanche de amor que haveria de ser o primeiro e inconsciente contributo para uma perigosa ilusão de poder e de eternidade.
Apresentou-me a Condessa de Ségur, Júlio Dinis, Eça de Queirós e a Madame Butterfly. Fazia-me os trabalhos de Inglês, para não ir em branco, para não me ralharem. Era em tudo a minha sombra e aconchego, fada-madrinha em permanente velada da minha formação e do meu bem-estar.
Foi o primeiro grande desaparecimento da minha existência, que viria a contar tantos. E com ela desapareceu um pouco de mim, que se lhe juntou e deixou estas saudades que me roem e crescem a cada dia que passa, mãe de todas as sombras que me anoitecem.

Em 1953 Portugal era um país calmo em que os meses se sucediam com grande remanso. Poucos automóveis cruzavam com lentidão as ruas. A intensa actividade agrícola da Lezíria que se estendia para lá do rio Tejo e dos montes do Bairro estremenho, empregava milhares de braços, alguns deles ocasionais, que se deslocavam das Beiras, do Alentejo, do Ribatejo interior, nas épocas dos grandes trabalhos do campo, e enchiam o comércio da vila aos sábados, a comprar chouriços e saiotes, bacalhaus e linhas de casear, xaropes e chapelinhos de palha.
Nesses dias o mercado abarrotava de gente vinda de Lisboa em busca da carne criada na planície a pasto verde, da fruta e dos vinhos do Bairro, dos sáveis e lampreias do Tejo, da fataça negral e das enguias, do achigã, das corvinas e robalos que os varinos da vila pescavam nas águas costeiras em frente da embocadura do rio.
A sociedade e o governo mantinham-se patriarcais, vagarosos e ponderados. A religião era diariamente testemunhada por sacerdotes e leigos, nos oratórios das casas de cada um, nas cadeirinhas com genuflexório das igrejas, nos actos oficiais onde a cleresia tinha lugar tribunício, nos cortejos fúnebres onde o padre-cura, paramentado de estola, vestindo sotaina e faixa cingindo os rins, barretina presbiterial protegendo a tonsura de geadas matinais, breviário ao peito, ladeado por dois acólitos de alva ou batina, o crucífero carregando a cruz de Cristo e o naveteiro, balançando o defumador, incensando o caminho para o Céu, percorriam as calçadas de calcário e basalto à frente do cortejo, a caminho do coval.
Os defuntos das famílias ricas iam em carros puxados por cavalos negros devidamente ajaezados e enlutados. As urnas da gente mais pobre seguiam em carretas funerárias tiradas à mão pelos gatos-pingados, trajando de negro.
A coluna de gente que os seguia, de escuro carregado, descobertos os homens e de véu descido as mulheres, ia silenciosa e contrita, cabeças baixas, arrastando os pés. A morte era então vivida e a sua presença era aviso do Alto e premonição certa de todas as soberbas. O homem permanecia mortal e era a cada passo lembrado da sua existência efémera. Atrás dos homens a quem só a caridade e a fé redimiam, seguia lento o trânsito, acomodando-se ele próprio à eternidade que dispensa pressas.
As salas das escolas ostentavam na parede de fundo uma cruz, o retrato de Salazar e o mapa-mundo.
O retrato de Salazar porque naquela época era ele que ditava a cadência, o tempo e os modos de tudo o que era português. A cruz que cumulava todas as bênçãos e devoções, assegurando a presença protectora e vigilante de Deus, que punia os extraviados e premiava os justos. O mapa-mundo porque os mares e as terras não eram mais do que caminhos desbravados pelos portugueses, onde cada torrão do chão de Portugal espalhado pelos cinco continentes, era o berço transcendente e épico de um povo heroico.
Nas salas das escolas aprendia-se a gramática, a religião e a aritmética. Por esta ordem de importância.
Nesse tempo o hospital velho, dependência da velha Misericórdia, mandado erigir pela Mesa do então Provedor e médico, Dr. Clemente dos Santos, meu trisavô, distribuía sopa e acolhia os mais pobres a expensas da santa casa. Irmãs da Caridade, com as suas largas coifas brancas, que lembravam gaivotas de asas abertas, tornavam menos miserável a miséria e a fome.
A medicina por todo o lado tinha os seus “joões-semana” que cobravam menos de metade das suas consultas: “Olhe lá, tem dinheiro para os remédios? Vá à farmácia do Largo e mande pôr na conta do Dr. Rodrigo”. E com o doente já a franquear a porta: “Olhe lá, tem dinheiro para comer? É que as hóstias não lhe fazem nada se não comer. Tome lá cinco escudos e vá com Deus, que mos há-de descontar na conta final”.
E os meus tios, Rodrigo e Luís, que não descansavam e tinham os consultórios cheios de manhã à noite, quando despiam a bata e pousavam o estetoscópio em cima da Farmacopeia Portuguesa ou do Prontuário Farmacêutico, em vez de somarem um honesto apuro do dia à custa dos pacientes cravejadinhos de bexigas ou de sarampo, coçavam a cabeça e remexiam as algibeiras na inquietação do que sobrara. Não fossem as tias e a botica do avô, teriam morrido mais pobres do que a miserável clientela.
O Luís, irmão de meu avô Francisco, em boa hora se virou para a religião e foi bispo do ramo lusitano da Igreja Evangélica de Inglaterra, de obediência cantuariana, que o salvou da indigência pequeno-burguesa da vila. E o Rodrigo, irmão de minha avó Valentina, morreu tão novo que escapou a estes tempos de pouca caridade e de médicos que fariam corar de vergonha os merceeiros de então.
Dizia eu atrás que o governo do país era patriarcal. Em abono da verdade era nesse tempo patriarcal a maioria dos governos. A democracia representativa e o sufrágio universal directo, marcadamente anglo-saxónicos, surgiram após a segunda guerra como a panaceia para todos os excessos. E uma temperança burguesa apoderou-se da maioria dos países, aplicados no recobro da industria, na mecanização da agricultura, na liberalização do comercio e na generalização do acesso à escola.
Só a partir do final dos anos sessenta é que as forças combinadas destes movimentos iriam ganhar um ímpeto e uma dinâmica capaz de produzir as convulsões e sobressaltos sócio-culturais que, alavancadas por grandes desenvolvimentos tecnológicos, conduziriam à instabilidade e à vertigem dos tempos modernos.
Nos anos cinquenta tudo assegurava uma continuidade plácida. Os partidos comunistas europeus tinham uma expressão residual e não causavam já apreensões sérias. Os tempos de Rosa Luxemburgo haviam passado. Os Estados Unidos ascenderam, após a guerra, a garante de quase tudo no mundo. Garante da moeda, da paz, da convivência entre as nações, do crescimento da economia mundial, da revolução tecnológica, das descolonizações ultramarinas e da contenção dos impérios.
O mundo para lá da cortina mantinha vivo o equilíbrio com as suas pequenas vitórias: primeiro a Coreia, depois Cuba, mais recentemente o Vietname. Mas a palavra apaziguamento, ainda com Krutchev, surgia a cada passo.
As monarquias europeias, com os seus rituais, o alheamento político dos países derrotados, Alemanha, Itália e Japão e o pragmatismo de De Gaulle, conjuravam o benefício de um desenvolvimento feliz e despreocupado. A Península, solarenga, dormitava. As décadas de cinquenta e sessenta foram o fim de um mundo que morria de velho.
E coube à minha geração, a dos jovens estudantes da década de sessenta que saiu à rua, culminando na inesquecível recordação do Maio de 68, mudar o mundo com o seu rebelde e barulhento anúncio de que a liberdade agora morava em nós. Para o melhor e para o pior.
Fui para a escola aos cinco anos, depois de uns meses a escrever com pena de leite numa ardósia, em casa de uma mestra que sentava meninos pequenos em banquinhos ainda mais pequenos. Era uma dessas mestras cuja única preparação pedagógica era ser mestra.
Ensinava a desenhar as letras numa pequena pedra preta, metida num caixilho de madeira crua afagada. Primeiro era preciso fazer o risco, depois desenhar as vogais sobre o risco. A seguir vinham as consoantes e os algarismos. A Cartilha do João de Deus servia de modelo e ensinava a juntar as letras: Pá, Mó, Ui.
Não tenho qualquer recordação de colegas e lembro muito vagamente a sala e a mestra. Ligeiros lampejos de memória, sombras, clarões que se consomem e apagam em brevíssimos instantes, em milésimos de segundo. Esta inexplicável falta de memória apenas a posso atribuir a um grande trauma, a uma grande frustração. Ter sido separado da minha mãe e do meu irmão? Enclausurado numa casa velha? Submetido a um trabalho de perícia manual para que não nascera, desenhar letras numa ardósia com uma pena que guinchava mal a arrastávamos na pedra? Fosse o que fosse, apagou-se-me esse tempo sem deixar o menor rasto, a menor gratidão.
Às vezes, na infância, com quatro ou cinco anos e até tarde, quando manifestava a minha rejeição a coisas que me impunham, explicavam-me com muitos argumentos a bondade da situação, os benefícios do sacrifício, a necessidade de seguir determinado comportamento ou manter determinada atitude. E diziam-me que tinha de aceitar a explicação e conformar-me porque disso dependeria vir a ser um homem, disso dependeria agradar a minha mãe, que eu adorava e a quem desagradar seria provocar uma enorme tristeza, cuja culpa não poderia ser de mais ninguém senão minha.
E eu acatava, obediente e incapaz de arcar com uma culpa tão insuportável. E toda a gente achava que eu tinha um entendimento muito para além da minha idade e apreciara devidamente as explicações e era um rapazinho muito inteligente, e fácil, e enterneciam-se com a minha precocidade. E eu guardava aquele sacrifício sem uma queixa, para não desagradar a minha mãe, trocando a frustração pelos elogios. E ela ia-me tolhendo a vontade com coisas que nunca identificou com chantagem emocional, encontrando em mim uma personalidade acomodatícia e consensual, que aprendeu a praticar desde a mais tenra infância uma economia de resposta quando a resposta trazia tensão e luta. Serão assim quase todas as mães ou seria a minha uma mãe psicologicamente impreparada, inculta, ou egoísta? Ainda hoje não o sei.
A poucos dias de ter carteira no Externato do Ribatejo, propriedade de uma temida Dona Inocência, irmã do escritor neo-realista Alves Redol, meu conterrâneo, saiu um diploma do Governo dizendo que só poderiam frequentar a primeira classe do ensino elementar os meninos e as meninas que fizessem seis anos no ano de matrícula. Ora eu só fazia seis anos no ano seguinte, em Julho. Foi um balde água fria na minha mente precoce, que se deleitava com as gravuras do Livro de Leitura oportunamente comprado na papelaria do Possidónio Valente.
Como a minha mãe achasse que voltar para casa redundaria em desperdício dos meus dotes e prejuízo da minha formação - era então já consensual na família que nascera para ser doutor, voltei para a mestra e para os banquinhos de costureirinha de alfaiate.
É chegada altura de dizer que em dezembro do meu segundo ano de vida, na véspera de Natal, me nasceu um irmão.
Embora a minha mãe tivesse todo o cuidado de deitar o meu novo irmão no berço (o «meu» berço), para me poupar a suspeita de que os meus direitos sobre o seu colo tinham sofrido uma alteração radical, pareceu-me aquele inesperado irmão grave ameaça ao meu estatuto, pelo que fui direito ao berço e arranhei-o tanto quanto pude.
Duvidou toda a gente que tivesse sido por maldade, afinal eu nem ano e meio tinha ainda de vida. Hoje sinto-me inclinado a pensar que me devo ter sentido seriamente ameaçado, ao ver desabar um mundo de que até então não duvidara pertencer-me.
O reino de que era senhor único e incontestado, diariamente reafirmado pela adoração desvanecida de pais, parentes e vizinhos, dividia-o agora com um intruso que ninguém me explicara de onde viera nem porquê.
Reparei que me arranjaram outra cama e que no meu querido berço, onde todas as noites minha avó me beijava e minha mãe aconchegava, dormia agora o invasor. E vi que a minha nova cama, demasiado grande e desconfortável, estava mais afastada da cama dos meus pais e que era ele quem agora dormia à distância de um braço estendido de minha mãe. Para cúmulo, ela tirava-o do berço várias vezes ao dia e metia-lhe na boca ora uma mama ora a outra, coisa que nunca me tinha feito, pelo menos que me lembrasse. Que raio queriam que eu fizesse?
É pena que as nossas recordações não cheguem tão longe. Para além de instrutivo, a quantidade de coisas da vida adulta que poderiam explicar, quer acerca dos filhos mais velhos, coagidos a aceitar uma primeira e inelutável derrota, quer dos filhos segundos, que iniciam a batalha por um terreno ocupado...
Terei várias ocasiões de falar deste meu único irmão rapaz. Não quero deixar porém de confessar desde já que, tirando os meus filhos, e talvez mesmo a par deles, o meu irmão é a pessoa de que mais gosto neste mundo.
A nossa pequena diferença de dezassete meses fez com que, muito pequenos, fossemos diariamente companheiros de brincadeira e compartilhássemos tudo, pais, parentes, roupas, brinquedos, bulhas e arrelias de cavaleiros andantes.
Assimilámos o mundo à nossa volta simultaneamente e a partir de uma mesma situação, sentados numa mesma plateia, numa mesma fila, em lugares contíguos.
Somos completamente diferentes um do outro e somos contudo tão iguais. Temos maneiras de ser tão diferentes e maneiras de estar tão parecidas. O que eu tenho de extrovertido e desbocado, tem ele de contido e reservado. No entanto, pensamos as mesmas coisas e percebemos isso sem a ajuda das palavras.
Que medos tão diferentes e que coragens tão próximas. Os mesmos enternecimentos e amargores para temeridades e ousadias tão distintas. Consciências tão idênticas e inconsciências tão diversas.
Mas não se pode gostar mais de um irmão do que eu gosto do meu.
A casa em que eu e o meu irmão nascemos tinha a frontaria virada para a fachada do casão da Câmara. Originariamente de dois pisos, haviam-lhe acrescentado um segundo andar para onde o Juiz da comarca foi viver. Era, e continua a ser, propriedade de uma gente de Arcos de Valdevez que nunca vi na vida, representada em Vila Franca pelo solicitador Valente, que tem hoje a exercer na praça local um filho e um neto advogados.
Quando o Canhoto velho, pai de minha “avó” Argentina e proprietário de uma Casa de Pasto afreguesada, a arrendou, era a renda mais cara de Vila Franca, dez escudos mensais. Quando a Argentina ficou sozinha com minha mãe, mortos pais e irmãos, a renda ameaçava ultrapassar os cem escudos.
Por intercessão dos fundadores da Biblioteca Municipal, o advogado António Vidal Baptista e o tesoureiro da Câmara Raul Francisco de Carvalho, a Argentina cedeu a parte da casa virada para o largo, constituída por quatro salas e um gabinete, para instalação da antecessora de todas as Bibliotecas do concelho, ficando para seu uso com a parte interna, três quartos, uma sala, cozinha, casa de banho e hall de entrada e ainda lhe tendo sido garantido um pequeno rendimento por contrapartida dos serviços de responsável (dizia-se Fiel, nesse tempo) pelo funcionamento da Biblioteca, que então abria das quatorze horas às dezassete e trinta e das vinte às vinte e três horas.
O período da noite tinha leitores certos, Faustino dos Reis Sousa, o ex-banqueiro da Ribeira de Santarém que viveu o resto da sua vida como poeta e dramaturgo vilafranquense na miséria, o Doutor Vasco Moniz, pároco da vila e criador do CASI, Centro de Assistência Social Infantil, o doutor Vilaverde Gonçalves, avô do nosso querido e saudoso João Vilaverde.
Gente que lia, frequentava tertúlias de conversa e amizades nas boticas que fechavam os taipais depois das onze e passeava nas noites amenas pelas ruas da Vila, hoje cidade deserta e triste.
Do lado direito, limitando a praça, ficava a casa da “prima” Marquinhas Araújo, viúva do cavaleiro Mário Luís Lopes, irmão do célebre cavaleiro António Luís Lopes (a quem muitos fazem de Coruche, mas que eram alhandrenses). Tinha nesse tempo no piso térreo uma célebre leitaria de um homem muito bêbedo, que nunca lá estava, e que acusava a mulher, que essa sim, estava lá sempre, de ser uma valentíssima bêbeda de chá. Nas suas mesas viria eu a namorar a minha primeira namorada de rapaz com calças.
Atravessando a abertura do largo para a rua Direita, que neste começava e que ia terminar após o Palácio da Vilafrancada, no bairro do Mártir Santo, São Sebastião, onde se encontrava com a rua Direita de Povos, passando o Alto do Borrecho, caminho único de Lisboa para o norte até quase ao tempo da Segunda Guerra, em que se rasgou a rua Palha Blanco deitando abaixo a casa contígua à Casa do Largo, chegava-se à «casa das tias», as três irmãs solteiras de meu bisavô Júlio, filhas do trisavô Bento, ao tempo ainda vivas, com a velha “Pharmácia” César, fundada pelo meu tetravô Francisco, que lá continua, no rés-do-chão. Nesta botica fizeram história os práticos de farmácia, Eugénio Quintino e Aurélio Guedes, primo direito das tias “bentas”.
Defronte ficava o maciço da Câmara municipal, que já havia sido Câmara, esquadra de polícia e cadeia, tudo no mesmo edifício.
Do lado esquerdo da Casa do Largo, bordejando a empena, corria o segmento urbano, recém aberto, da estrada nacional 10, que ligava Lisboa ao Porto. O largo dividia-o agora nas duas ruas principais da Vila, Palha Blanco a norte (hoje Alves Redol) e Luís de Camões a sul.
Do outro lado da Palha Blanco, fazendo gaveto, construiu o meu tio-tetravô David César Pereira (fundador de outra botica, ao tempo em mãos de sua neta Otília, onde os ajudantes Violeta, Limão, Saúl e Borda d’Água fizeram história), a partir do rés-do-chão da Casa Patrício, o belíssimo casarão que lá continua, com o seu jardim de marmeleiros e nespereiras que dá para a rua dos Bombeiros Voluntários, onde nasceram e viveram os seus netos, Abel, distinto pediatra e director do Hospital da Estefânia, e Artur Pereira da Cunha.
Do mesmo lado, adiante vinte metros, na então rua dos Mercadores, ficava a casa dos meus avós maternos, e, logo a seguir, no segundo andar da “Pharmácia” César Pereira, a casa de meus avós paternos. Defronte, a casa da prima Ilda Guedes, irmã do Capitão José Maria Guedes, que juntava o exercício de professor de matemática e de desenho do Colégio Afonso de Albuquerque, mais tarde Escola Técnica Comercial e Industrial, ao de comandante vitalício dos Bombeiros.
Esta concentração de parentes fazia da praça dos Paços do Concelho um largo familiar. Para onde me virasse lá estava o olho tutelar e vigilante de uma tia-bisavó ou de uma prima em quinto grau, ostentando um apelido de família.
O facto do meu trisavô, dos meus dois bisavôs paternos e de dois dos meus tios, seus filhos, serem médicos locais, faziam com que toda a gente me conhecesse. Não sabiam o meu nome, mas tratavam-me pelos seus apelidos, ou até pelos seus nomes próprios, quando calhava.
Lembro-me de me divertir com os infindáveis cumprimentos que o meu pai, de sorriso afivelado, dirigia a todos os que se cruzavam com ele: «Ó mamã, o pai fala a toda a gente. - Ó filho o teu pai é uma candeia da rua», respondia ela entre mordaz e brincalhona. Isto, claro, antes das grandes migrações dos anos sessenta e setenta que deixaram desertas as nossas aldeias e encheram de desconhecidos a vila onde me criei.
Desenvolvi-me acalentado por um sentimento de proeminência e de estatuto que constituiu, também ele, um contributo mais para esta ilusão subconsciente de poder e de eternidade que seria a mãe de todas as minhas frustrações e enganos, a par de uma incapacidade de perscrutar o futuro e antecipar e desenvolver a atitude adequada aos rearranjos sociais que nele se operariam.
Os meus apelidos e a parentela do lado paterno traziam agarrados um barão, um presidente da Academia das Ciências, um presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes, dois lentes da Universidade, dois presidentes de Câmara, um almirante da Armada, dois directores de hospital, um bispo, oito médicos e gerações de farmacêuticos. A gente humilde da família de minha mãe, com origem em pequenos artífices e agricultores de província, não foi suficiente para compensar e equilibrar tamanha fatalidade e proporcionar-me as defesas que me haveriam sempre de faltar.
Longe de me transmitirem a ambição e o desejo de vencer, legaram-me uma indulgência leviana e preguiçosa, incapaz de adivinhar e enfrentar a competitividade plebeia e dura, de um futuro para o qual não tive nem o nervo, nem a astúcia, de criar as armas e as defesas dos novos vencedores.
Um pai interessante e culto mas apático, e uma mãe pouco enérgica, ajudaram a moldar a personalidade imprevidente e contemplativa com que parti para o mundo.
Fui um bom aluno de instrução primária, ainda que distraído e ausente. Suportava com dificuldade os tempos mortos e os ritmos de uma aula onde uma envinagrada Dona Sofia, com um caparro e um carão de guarda prisional, juntava as quatro classes do primeiro grau, ensinando a todos em simultâneo. A primeira classe fazia a cópia em caderno de duas linhas, enquanto ela engrolava o ditado da quarta, ao mesmo tempo que a terceira fazia o desenho “à vista” e a segunda recitava em coro a tabuada. E ela parava o ditado para corrigir a aritmética ou para ralhar com os meninos que enchiam as carteiras, os cadernos e as batas de borrões de tinta permanente. Rapazes e raparigas divididos em professoras e partes incomunicáveis da casa, não fosse o diabo tecê-las, para mais em tão tenra infância.
As oito longas horas diárias da escola custavam a passar. O ensino particular, quase sempre entediante e medíocre, era uma estucha.
Aos oito anos o meu irmão rebelou-se e obrigou a minha mãe a transferi-lo para o ensino oficial. Não estava na minha índole rebelar-me.
No exame da quarta classe, então o primeiro e único grau do ensino elementar, acometido por um acesso agudo de distracção ou uma dislexia súbita, copiei mal todos os enunciados dos problemas de aritmética para a folha de respostas.
Os exercícios estavam todos bem resolvidos, mas como partiam de valores diferentes dos do enunciado, as respostas não eram condizentes com as soluções da grelha de aferição, o que ditava um inevitável chumbo. E eu chumbei clamorosamente depois de uma brilhante instrução primária.
Tive a felicidade de ter saído um decreto que dava por automaticamente aprovados no exame da quarta classe, todos os alunos que fossem aprovados nos exames de admissão às escolas técnicas ou aos liceus. Ora eu, no espaço de dias a seguir ao chumbo, fiz os dois exames, para os quais estava pré-inscrito, com a classificação de Muito Bom. Não tive assim que repetir a quarta classe e ingressei de imediato no primeiro ano do Liceu Nacional de Passos Manuel, a São Bento, na capital.
Aos dez anos de idade, de calções e pasta de cabedal, apanhava diariamente o transvia para o Rossio (uma hora de viagem, naqueles idos de 1963), subia a calçada do Carmo, atravessava o Chiado e apanhava o elétrico no Camões até final da Calçada do Combro. Apeava-me e subia até ao Largo de Jesus, onde ficava o casarão do liceu. Saía de Vila franca pouco antes do meio dia e regressava por volta das oito da noite. Custava trabalho à minha mãe levantar-me de manhã para estudar e, à noite, o cansaço vencia-me.
Depressa fui acumulando matéria a matemática e a vontade e a habilidade para o desenho eram abaixo de pobres. Ferido mortalmente a duas disciplinas, no segundo ano, salvou-me a transferência no inicio do terceiro período para o Colégio Doutor Sousa Martins. Aí estava eu outra vez no ensino particular e de novo em Vila Franca.
Presente a exame, a prestação de matemática foi tão má que o Engenheiro Feijão, alhandrense dotado de pedagogias de mestre-de-obras e muita prática da regra de três simples, olhava para a presidente de júri encolhendo os ombros e olhava alternadamente para mim com a assombração com que se olha para um diabo da Tasmânia com penas de avestruz.
A senhora presidente, que me havia examinado a francês, opôs-se com determinação: um aluno que tinha feito um exame de francês daqueles não podia chumbar, o assombrado Engenheiro Feijão que se arranjasse mas teria de me dar nota para passar. E assim despachei o primeiro ciclo do curso dos liceus, coxo a matemática e amparado em prerrogativas presidenciais.
O ensino privado do meu tempo merece que lhe dedique meia dúzia de linhas. Os colégios formavam-se à volta de um ou dois licenciados ambiciosos, que viam no estabelecimento que fundavam uma oportunidade de negócio e a possibilidade de fugirem aos sacrifícios e á pobreza dos professores do ensino público.
Mal pagos e sujeitos a aturar os selvagens do Bairro Alto, da Bica, de Campolide e da Madragoa, que os pais punham a estudar na esperança de os furtar às cordas dos limpa-chaminés, às caixas dos engraxadores e à cadeia, os pobres professores das escolas do Estado sofriam mil injúrias e ainda tinham que virar os casacos, quando as mangas se esgarçavam, puídas, nos tampos das carteiras.
Tristes e saudosos professores do ensino público do meu tempo, como eu os lastimo e como os venero, na sua grandeza estoica, na sua pobreza envergonhada, esquecidos pela ingratidão de uma sociedade ignorante e boçal, obrigados a poupar no gás do aquecimento, transidos de frio nos claustros dos casarões inóspitos onde ensinavam, contando os miseráveis tostões de um salário indigno e ainda assim com ânimo para exaltar Camões e Eça, força de alma para reinventar o teorema de Tales, o triângulo de Pascal e os universais de Aristóteles.
No colégio, o núcleo central de docentes, os sócios, juntava a si autodidactas, agentes técnicos, bacharéis que ensinavam tudo por pouco dinheiro, ou professores públicos que complementavam o seu salário com um “gancho” no privado. Tive um que, só no meu tempo, dava ginástica, história, ciências naturais, organização política e filosofia. Eram pau para toda a obra. À noite, depois do jantar, estudavam a matéria que ensinariam na manhã seguinte. E os alunos lá iam passando, fazendo o curso dos liceus no colégio dos meninos ricos.
Trago o gosto por aprender, que é muito diferente do gosto por estudar, desde que comecei a falar. A minha mãe dizia que as primeiras palavras que aprendi foram “mamã” e “porquê”. É certamente exagero, mas habituei-me a aprofundar tudo o que me interessava e o ensino nem sempre corresponde a esta necessidade.
Na leitura comecei por volta dos seis para os sete anos. Devorava tudo o que apanhava, as novelas de aventuras de Salgari, os Cinco de Enid Blyton, Robin Hood, Ivanhoe, Condessa de Ségur. “A Irmã do Inocente” da Condessa de Ségur e “Quero a Lua” de António Botto, ficaram tão marcados na minha memória como O Primo Basílio ou A Cartuxa de Parma.
Por essa época os meus pais ofereceram-me o meu primeiro livro de Hergé em francês, “Tintin au Tibet”. Como muitos amigos do parque infantil eram franceses que tinham os pais a trabalhar nas multinacionais do concelho, e a minha mãe, já casada e com filhos, fazia um curso da universidade de Toulouse, frequentando aulas no Instituto Francês em Lisboa, desenvolvi o meu francês desde muito cedo e hoje é a minha segunda língua, a par do inglês e do espanhol que domino com alguma perfeição.
Pelos dez anos comecei a aventurar-me pela literatura portuguesa séria a que juntei Erich Maria Remarque e Sven Hassel que me iniciaram nos horrores da guerra, Walter Scott, Lewis Carroll, Jack London, Irmãos Grimm, Andersen, as longas sagas de Grischka (René Guillot) e do justiceiro do far-west Catamount, para além de montanhas de “livros aos quadradinhos”, desde o Condor Popular ao Cavaleiro Andante. Toda a gente me oferecia livros. Os meus filhos continuam a fazê-lo.
O meu irmão ganhava medalhas na ginástica e despontava nele um carácter físico e activo oposto ao meu, mais cerebral e dado à contemplação. O estudo e a leitura não eram o seu forte e um ciclo preparatório que se arrastava convenceram a minha mãe a interná-lo na Escola Agrícola de Santarém. Em boa hora o fez porque lhe pôs na mão a enxada que o acompanharia uma vida inteira e que lhe granjeou o pão sem grandes sobressaltos e com a abundância e constância necessárias ao seu feitio estável e prudente.
Nesta época, uma oralidade fluente, com riqueza de vocábulos e matizes, permitia-me abordar uma variedade de assuntos com a segurança própria da juventude. As asneiras que dizia pela boca fora, sempre que não acertava, soavam bem e confundiam os ouvintes menos precavidos pela aparente propriedade e pela compostura.
Depressa ganhei uma fama mozartiana de precocidade, que trouxe uma indesejável complacência à ilusão subconsciente de poder e de eternidade a que já por duas vezes aludi, e que se viria a tornar principal causa dos tormentos e dificuldades da minha idade madura.
Por esta época foi assassinado em Goa o meu primo José Júlio. Encontraram-no com uma espingarda nas unhas e um tiro nas costas. Engenheiro silvicultor, tinha responsabilidades públicas na descrição e cadastro das propriedades locais e fama de incorruptível. Isso parece ter-lhe custado a vida, pois fazia questão de estorvar interesses de famílias mafiosas e de militares corruptos. O capitão Lourenço, então director da PVDE, antecessora da PIDE, a instâncias de Salazar, aconselhou o meu tio, médico do Governo Civil, de quem era amigo pessoal, a não forçar investigações, uma vez que isso não lhe devolveria o filho. Os interesses do Império ficaram assim protegidos.
Por esta época também, começou o meu pai a beber muito e a comportar-se de forma agressiva sob o efeito do álcool. Destruiu a economia familiar, sacrificando quer a estabilidade e a unidade da família, quer as oportunidades de formação e educação dos filhos, que deixou de conduzir e orientar.
Dividido entre o respeito que devia ao meu pai e a defesa física e moral da minha mãe, severamente atingida, fui forçado a intervir diversas vezes com uma idade que me deixaria marcas profundas. O internamento do meu irmão na escola agrícola e o seu feitio avesso a tomar partidos, permitiram-lhe um alheamento que eventualmente o acobertou de sequelas traumáticas. O pudor familiar, que garantiu o suporte mínimo de vida, e a protecção do Dr. Francisco Calheiros, Presidente das Companhias Reunidas Gás e Electricidade, evitou o desemprego e deixou intocada a imagem pública do meu pai.
A minha mãe, pessoa constitucionalmente feliz e alegre, nunca recuperou o seu ânimo de outrora. As poucas felicidades que a vida lhe proporcionou deveu-as apenas à sua labuta solitária. A doença levou-a acompanhada de uma tristeza profunda e de uma profunda inquietação com o futuro da minha irmã, então ainda muito jovem.
Nascer numa casa com janelas sobre o principal largo da terra é um convite à contemplação.
O espectáculo das manhãs negras de inverno, em que nenhum raio de sol penetrava por entre as chuvas torrenciais que desabavam das nuvens baixas, carregadas de electricidade que rebombava em trovões de meter medo a santa Bárbara, olhar o largo submerso como um esteiro do Tejo, galgando falquitos e inundando as casas térreas da rua dos varinos (Luís da Camões).
As tardes de Agosto com os seus pores-do-sol laranja e purpura de verão, com os fios dos telefones esticados sob o peso de centenas de andorinhas, repousando da frenética perseguição de mil insectos com que alimentavam as crias nos beirais dos telhados, piando em coro, esfomeadas.
E passava o “pitrolino” mais a sua carga de petróleo e sabão azul e branco e mil outras coisas empilhadas na carroça puxada pela mula vagarosa, indiferente, que os pobres compravam por um tostão ou um cruzado de cobre.
O “rei-do-sono” comandava o trânsito, um pouco menos sonolento no dia em que estreou, orgulhoso, a nova farda cinzenta da polícia e a pistola estrangeira que substituíra o sabre. Os manequins da alfaiataria do Horta, nos seus trajes camperos, olhavam o pelourinho manuelino, o “Saridom”, ajudante da Pharmácia Central, que vinha buscar umas hóstias purgantes à César (as farmácias da família consolidavam stocks), enfiava a cabeça na loja de retroseiro do Luís Lavareda para contar uma anedota ao Domingos Bruno. O Cabaço “dos cães”, descalço e com barba de quinze dias, pregava os quadros do cinema à esquina da Casa Patrício escoltado por sete cães sarnentos.
O largo tinha tudo. Um oculista, máquinas de coser Oliva, com vinte raparigas a aprender, dando freneticamente ao pedal, a leitaria Moderna, uma farmácia, um mecânico-dentista num primeiro andar. À distância de cinquenta metros havia uma cerzideira e uma ajuntadeira. Uma apanhadeira de malhas de meias de vidro e dois sapateiros de deitar meias-solas, uma capelista, o Ambrósio e mais três barbeiros e outras cinco tabernas, a do Diogo, a do Noel, a do Gabriel, a do Zé dos Nabos e a que tornou célebre a “cigana” - uma garrafa de cerveja de 33 centilitros que se enchia de vinho tinto. Mais duas leitarias, a do Marques e a do Sacadura, duas drogarias e a casa de ferragens do Redol, casas de fazendas, quatro alfaiates, três papelarias e um fogueteiro, três cafés, o Central, o Arcade e o Alvarez. Três ou quatro mercearias em que a do senhor Chico, de fato de cotim, manguitos de seda e gravata preta, pontificava, com a sua moderna bomba de gasolina apetrechada de funil para os motores a dois tempos (Francisco Assunção Santos, aplaudido amador de teatro do Grémio e irmão do Cabecinha, que tomava um “iogurte” tinto em cada tasca por onde passava), e a Moda Bela, mãe de todas as “boutiques” que estavam para chegar. A mercearia do Tomaz, com as amêndoas francesas e as torradas e as molares de Coimbra. O restaurante do Cardoso, onde o frango na púcara era servido à mesa pelos dois genros, Porfírio e Abel.
O largo era o centro geográfico de um comércio florescente que dava emprego a dezenas de caixeiros. A menos de cem metros era possível encontrar calafates, tanoeiros, valadores e carreteiros que se ocupavam de mudanças e recados, fretavam a carroça por dez réis de mel coado para o transporte de alguma cartola de vinho até ao cais novo, para embarcar para Sacavém.
Pobre “Escuta”, que nunca calçou uns sapatos, andrajoso e de barba branca, que arrastava a carroça quase sempre vazia, seguido pelo seu fiel podengo cruzado de “bichon” frisado, que assustava as criancinhas e levava as malas à estação. Pobre “Paveia” que vendia cautelas, todas as manhãs deixava de beber e todas as tardes suspendia a abstinência de vinho devido a uma “homenagem” que tinha de prestar. Pobre Zé Russo, carregadinho de fios de ouro, a quem a irmã, a mãe, o polícia Zé do Vale, batiam, dizia ele, que deitou fogo aos calabouços da PSP local e a quem afinal o Zé do Vale, pai da minha primeira namorada, essa, a da leitaria, admoestava paternalmente: “Não tens pena, Zé Russo, sempre bêbedo, sempre bêbedo? - E tu, ó Zé do Vale, sempre polícia, sempre polícia, sempre polícia?”.
Varinos, campinos, carpinteiros de toscos e limpos, magarefes, cauteleiros, operários da fábrica do Delgado, ou do Mário Infante, avieiros do esteiro do Nogueira, primos de todos os avieiros do Tejo, desde as Caneiras a Valada, e à Palhota e ao Escaroupim, que pescavam de noite o linguado, a fataça-tainha e o camarão do rio e, na sua época, o sável e a lampreia, as enguias-de-vidro, o meixão proibido.
Criadinhas pontilhavam de branco, com seus aventais e cristas, o meu olhar sobre aquele largo tão meu e eu tão dele.
1961 foi o ano mais saliente da minha primeira década de vida, no que diz respeito aos acontecimentos nacionais. Foi o ano do assalto ao paquete Santa Maria, por um comando chefiado pelo ex-militar português, escritor e africanista, Henrique Galvão, no decurso do qual morreu o meu conterrâneo, e terceiro piloto do Santa Maria, João José do Nascimento Costa. A consternação dos vilafranquenses foi profunda, não só devido à juventude daquele oficial que resistira ao assalto, mas pelo facto do seu pai, Tomaz Costa, ser o considerado e conhecido proprietário da melhor mercearia de então, a vinte metros do largo, na Rua Almirante Cândido dos Reis, à qual sucederam a cervejaria Paramés e o Xira-Doce, ambos já desaparecidos.
Dias depois (Fevereiro e Março) rebentava a guerra colo­nial com os massacres de Luanda e do Norte de Angola, em que o MPLA e a UPA/FNLA, fariam a sua aparição.
Em Dezembro desse mesmo ano, 1961, a União Indiana invadiria Goa, Damão e Diu.
Salazar, apoplético, protestou contra a invasão e mandou morrer os soldados sob o comando de Vassalo e Silva, na defesa, até ao último cartucho, de um território que ele entendia ser português. Nunca aceitou que os direitos de presúria, estabeleci­dos pelas naus henriquinas, também tivessem os dias contados, e que não se podia aplicar às terras-mãe dos bailundos, de Gungu­nhana ou do pandita Nehru, a mesma lei invocada por D. Afonso Henriques para anexar a taifa muçulmana de Serpa.
A descolonização das possessões ultramarinas era um movimento imparável, financiado pelos capitais europeus, ameri­canos, russos e chineses, irmanados na cobiça do petróleo, do ouro, do ferro, das esmeraldas e dos diamantes, do café e do cacau, das madeiras, do sizal, do cânhamo, do chá e de um sem número de outras riquezas coloniais.
A cobiça fez mais pela descolonização do que as ilusões de autodeterminação dos povos africanos. A seguir foi instalar governos indígenas, mais ou menos ligados aos partidos da luta armada, fáceis de comprar, desde que se enriquecessem as cinco ou seis dúzias de dignitários que preenchiam as nomenclaturas do poder local.
Quanto às guerras tribais e ao parto sangrento da nova liberdade, sequelas da partilha territorial que dividira etnias e nações, agora reacendidas pela disputa dos despojos, facilitavam o controlo da população e estimulavam o mercado de armamento, constituindo cínica moeda de troca contra os direitos de explorar tudo, desde as minas às florestas, às monoculturas que destroem milhões de hectares de solos magros e arenosos e que dizimam a fauna e a flora de vastas regiões, até ali em equilíbrio natural.
Não se pense que estou contra a descolonização e menos ainda contra a autodeterminação dos povos e o direito de se gover­narem e governarem os territórios que foram sempre seus até ao aparecimento das primeiras velas no horizonte oceânico. Estou é contra o que veio depois. E contra a rapina dos países modernos e industrializados que patrocinou e instalou a corrupção, a guerra civil e o genocídio de etnias e nações.
Mas, ignorante dos males do mundo, a cadência dos dias da minha infância era monótona e feliz. Pouca gente tem a noção de como a felicidade nada mais é do que saber o que se espera e não esperar nada de mau. E a visita diária do padeiro que batia à porta pelas oito, seguido com intervalo de minutos pelo leiteiro, contribuíam decisivamente para a felicidade geral.
O dinheiro tiranizava-nos menos do que nos dias de hoje. É verdade que depois da guerra a moeda evoluíra. Desapareceram as moedas de meio tostão, cinco centavos de escudo, o preço de uma dúzia de pastéis de nata da Rua dos Caetanos, ao Bairro Alto, nos tempos de estudante do Conservatório Nacional da Argentina, que lá fez o curso de piano com vinte valores, examinada pelo Viana da Motta com a ajuda de uma partitura de João Sebastião Bach.
Naquele tempo corria o sistema monetário decimal da Rainha Dona Maria II (Lei de 24 de Abril de 1835), com moedas de um real, cinco, dez e vinte reais (o vintém), de cobre, e os tostões de prata no valor de 100, 200, 500 e 1.000 réis (esta última, anos depois, iria chamar-se escudo). Em ouro cunhar-se-iam as coroas (5.000 réis), as meias coroas e os quintos de coroa.
Equivalia hoje a “soma” despendida pela Argentina na rua dos Caetanos, a vinte e cinco milionésimos de euro. Ao cambio do pastel de nata, passado um século e pouco, significa que a moeda encareceu muitos milhares de vezes. No meu tempo ainda se comprava uma medida de pevides de abóbora secas e salgadas, ou um rebuçado com o cromo em papel de um jogador de futebol, por meio tostão.
E embora o tostão (dez centavos de escudo) tivesse permanecido até há bem pouco tempo, a configuração corrente de quatro tostões, um cruzado, celebrizada pelo pão branco de meio quilo, tinha desaparecido. A partir da minha infância já nada custava um cruzado, tirando as pevides e os rebuçados da bola.
As moedas, na década de cinquenta do século XX, com excepção das de dez e vinte centavos, eram todas de prata de lei e as notas tinham a palavra “Ouro” por debaixo do seu valor facial em escudos. A guerra tinha deixado o Banco de Portugal a abarro­tar deste metal, em que a Alemanha fazia os seus pagamentos do volfrâmio que de cá levava para as fábricas de canhões do senhor Krupp.
Com a guerra veio a inflação e a volatilidade dos câmbios mas, como o seguro morreu de velho, pensava Salazar, que temia mais as evoluções do que as correntes de ar, em vez de aumentar o investimento público para desenvolver e modernizar o país, afer­rolhava-se o ouro que fidelizava a moeda de papel e sustentava o câmbio e a segurança comercial do escudo.
Os merceeiros mediam cinco tostões de arroz, ou de azeite, e o meu primeiro maço de cigarros, uns “slims” fininhos, curtos e sem filtro, custou-me dez tostões (um escudo) e trazia doze cigarros. Eram as “brocas” Kentucky.
Os pobres podiam então fumar, coisa que hoje lhes é difí­cil, quando não “cravam” o parceiro. E tinham ainda a alternativa mais económica de comprar uma onça de tabaco picado “Águia”, “Francês” ou “Superior” e um livrinho de mortalhas “Zig-Zag”, importado pela Casa Havaneza, para enrolarem os seus cigarros, como fazia o meu avô Milhano, encostado à ombreira da porta da rua, quando ia aquecer-se ao sol de inverno.
Para além do carteiro, da varina de canastra à cabeça, do homem do talho, batia ao ferrolho uma visita por outra, o mais era gente da casa ou de casa dos meus avós. Íamos para a rua brincar porque não passavam carros, ali ao pé da porta.
A nossa preservação era total. Nã0 dizíamos asneiras, não sabíamos que as pessoas podiam enganar as outras ou fazer-lhes mal sem razão. Só tivemos televisão pelos treze ou quatorze anos e nesse tempo a televisão estava impedida de mostrar coisas feias, ou más, por uma vigilância patriarcal católica romana.
A preservação era total, repito. E a impreparação para a vida que aí vinha ainda era maior. O liceu seria um choque. Os meninos de Campolide, Moscavide, Chelas e Marvila, olhavam para mim como se olha para um marciano e, num ano, ensinaram-me mais coisas do que eu tinha aprendido em dez anos. O colégio, com a sua população de meninos filhos de novos-ricos, ainda piorou as coisas. Os primeiros namoros foram desastrosos. Os primeiros amigos... Bom, não trouxe amigos das escolas secundá­rias. Recordações de professores, meia-dúzia. De raparigas boni­tas, ou atrevidas, ou inacessíveis, outra meia-dúzia.
Passei a cumprimentar as meninas com dois beijinhos, em casa só se usava um. Vi-me na necessidade de substituir hábi­tos e gostos de infância pelas novas modas, éticas e estéticas, pequeno-burguesas umas, proletárias outras. Modas da rua, desconhecidas.
A minha mãe começava a observar as mudanças e chamava-nos selvagens. Hoje penso que perfilhei com demasiada abertura essas novas modas, na ânsia de lhes apanhar as manhas para me defender. Às vezes uma rudeza, quando não uma grosse­ria, mas sempre uma deseducação, uma vulgaridade agreste. Protegeram-me às vezes, mas em geral prejudicaram-me a postu­ra, dando-me a ilusão de que por aí havia um caminho mais fácil. Nem fácil nem difícil, por aí não havia caminho nenhum.
Mas o pior da minha infância foi os meus pais terem falhado em mostrar-me que ter e parecer, em vez de ser, seriam, no futuro, o único sustentáculo do estatuto, e que, estando impedido pelos constrangimentos da consciência e pelos condicionamentos da educação de fazer batota, entrar em cambalachos e enganar o meu semelhante, as únicas coisas que me poderiam garantir uma velhice desafogada, seriam ser doutor e sacrificar os pequenos (e grandes) prazeres ao estudo.
Pôr os outros a abanar a cabeça afirmativamente mesmo quando não entendessem o que eu dizia, ou nem sequer soubes­sem de todo o que eu dizia. Porque, convenhamos, em círculos privados dão jeito uns milhões de euros para se ter sempre razão. E, que diacho, é preciso uma boa casa, um bom carro, uma boa vida para se ser respeitado.
Não me transmitiram as armas de sobrevivência, nem as armas de que eu precisaria para competir num mundo mais feroz do que aquele em que havia nascido: algo entre o marrão e o opor­tunista e o velhaco, classe de maneiras de fazer para que me falta­va a destreza.
Talvez não soubessem preparar-nos quando éramos pequenos. Quando me avisaram era demasiado tarde. O mal estava feito e, durante a adolescência, eu optaria sempre por escolher o prazer e a facilidade, ou a consumir o meu tempo a viver e a fazer coisas para os outros, a intervir socialmente em iniciativas que me davam gozo, das quais nada ou quase nada perdurou, numa dispersão perdulária das minhas habilidades, esvaindo-me numa disponibilidade ingénua, em vez de as usar para prevenir o meu futuro pessoal.
No entanto, costumo pensar a este respeito que, no essencial, tive uns bons pais. Não me conduziram pelos caminhos da utilidade, nem das ambições materiais, mas mostraram-me os caminhos da beleza e da arte, do sentimento e do transcendente. Ensinaram-me a extasiar-me, a reverenciar e a sorrir, agradecido. Talvez os caminhos do inútil, mas, fosse como fosse, não se pode dizer que tenha sido pouco.
O meu pai não gostava de dar a mão aos filhos, quando passeávamos nas ruas. Nem era dado a grandes ternuras em priva­do. Mesmo quando éramos muito pequenos. Raramente ia além de um beliscão nas bochechas acompanhado do “amoroso” rapapé “Seu nêspera!”.
Alguma coisa o impedia de dar ou receber carinho físico, ainda que se lhe percebesse uma vontade enorme de o fazer. Um pudor que não tinha outra explicação para além de uma orfandade precoce (o meu avô paterno era um homem meigo que morreu vitimado por um tifo quando o meu pai ainda não completara sete anos) e de uma mãe castradora, para quem a ternura e a protecção se esgotavam a forçá-lo a ajudar o padre Napolesim na santa missa e a empanturrá-lo de gemadas e marmeladão.
Não conheci nenhum dos meus avós paternos. Penso que teria gostado de ambos. Da minha avó por falar com o Além em mesas pé-de-galo e dar pratos de sopa a todos os pobres que lhe subiam as escadas de casa, e do meu avô por ser o único homem da vila que ia buscar água à fonte com um cântaro de barro (traba­lho destinado nesse tempo às criadas e a mulheres).
A minha mãe, pelo contrário, convivia bem com tudo o que era físico, à semelhança do que acontece comigo, desde os tabefes e as palmadas aplicados com determinação, aos beijos e carícias e às longas conversas na sala, connosco ao colo, com três ou quatro anos de idade. - “À medida que o Fracisquinho for cres­cendo a mamã vai ficando velhinha, cada vez mais velhinha, até se despedir da vida e do Francisquinho e partir para o céu...” E depois de um longo intervalo de perplexidade e reflexão: “Ó mamã, eu não quero crescer.”
O meu pai raramente nos batia, mas, quando perdia a cabeça e nos dava uma valente surra (quase sempre pressionado pelas queixas de minha mãe, cansada das nossas diabruras e disputas fraternas), ficava tão afligido e doente, que corria à paste­laria do Sacadura para nos comprar uma pirâmide de chocolate, que nos levava à cama, sorridente, mostrando o embrulhinho. Nessa altura dava-nos um beijo, seguido de um beliscão na boche­cha e do cumprimento de reconciliação, “Seu nêspera!”
Na época os adultos impacientavam-se com facilidade com as diabruras das crianças e exigiam delas um comportamento de pequenos adultos que quase sempre violentava as expressões próprias da idade, a ponto de, por receosa generalização, no meu caso e do meu irmão, pedirmos licença aos cães e às cadeiras quando lhes passávamos defronte. E a minha mãe relembrava com frequência o “conchencha” que eu ia repetindo, de cada vez que se me deparava um obstáculo, nas minhas deambulações pela casa ou no jardim público aonde nos levava pelas manhãs de sol.
Hoje caiu-se no extremo oposto. As crianças podem fazer tudo. Menos cair e esfolar um joelho. E elas, na ausência de regras, desenvolvem comportamentos aberrantes, que culminam frequen­temente numa profunda infelicidade e na incapacidade de lidarem com a negação e a frustração. Pobres crianças do meu tempo, ciosamente zeladas a ponto de nunca conseguirem esfolar um joelho, que correm e gritam nos restaurantes e mexem em tudo e nos deixam com vontade de dar um tabefe nos papás. Tão triste­mente educadas e deixadas tão sós e desorientadas.
O nosso pai era o pai típico da sua época: ausente. Ao princípio chegava tarde porque fazia serão, quando jantava já está­vamos na cama, ou jantava depois de nós e corria para o café, para os amigos. Quando regressava dormíamos há muito. A minha mãe, omnipresente, tentava compensar-nos como podia e sabia, coadjuvada pela Argentina e pela incansável tia Sílvia.
Ao sábado, até aos nossos oito ou nove anos, antes de começar a beber e separar-se espiritualmente da família com quem passou a estar sem estar, vazio e distante na sua surdez inacessível e na sua apatia, tínhamo-lo toda a manhã. Dávamos longos passeios ao campo ou até ao “tentadero” da família Palha, onde toureávamos uma “tourinha” bem encornada, com lombeira de pneu velho, para espetarmos as bandarilhas, montada num carrinho feito com a roda de uma bicicleta. Ali acorriam os futuros toureiros e velhos capinhas e peões-de-brega. O “Canucha”, Carlos Falcão, grande novilheiro e bandarilheiro, os sobrinhos, Osvaldo e o enormíssimo José Falcão, então ainda só promessa, o “Alho”, a quem o meu pai tratava maldosamente por “meu car' Alhinho”, o Rafael, que morreu em Inglaterra desiludido de toureirias...
Foi a nossa iniciação física à tauromaquia. O sopro quente dos toiros de carne e osso, do lado de lá dos arames, só o viríamos a sentir em Pancas e Bate-Orelhas, na Baracha, no Roncão, onde às dez da noite uma vaca deu uma tareia no meu pai, que a citava de capote nas unhas na direcção do sítio onde ela não estava e se arrancou com codícia fatal do sítio onde estava. Enganos!...
Aqueles toureiros ensinavam-nos os passes, corrigiam-nos a postura e os vícios. Vaticinavam qual de nós ia ser toureiro.
Depois de almoço o meu pai desaparecia e regressava de madrugada com uma valentíssima bebedeira. Passava o Domingo a cosê-la, deitado. E nós íamos para “casa das tias” ver o filme da tarde, o Bonanza e os desenhos animados do Looney Tunes. Só tivemos televisão mais tarde, pelos quatorze anos, como se disse atrás, a tempo de ver a “Gabriela”, na versão quase pornográfica de Sónia Braga e Armando Bogus, cheia daquela sensualidade de outros tempos.
Pobre geração da internet e dos jogos de computador e telemóvel, que desconheces o prazer da conversa fiada, da televisão na Brasileira e no Tic-Tac, como te deve ser difícil imaginar-nos a ouvir os diálogos da Lélé e do Zequinha na Emissora Nacional e os Serões para Trabalhadores da FNAT, apresentados pela Maria Leonor e pelo Artur Agostinho. Como te deve custar ler livros maçudos, sem bonecos, ler o Expresso e o Diário de Notícias, discutir coisas sérias á porta dos cafés, sem telemóvel, nem pc, nem laptop, nem notebook, nem...
Como deves achar uma estucha conversar até às quatro da madrugada e depois ir comer um coelho à caçador ao “Zé Bexigoso”, ou ir comprar pastéis de nata à fábrica do “J'aquim Pasteleiro”, ali à igreja Matriz, ou um casqueiro à padaria do Jaime “Padeiro”, mesmo ao lado do Alvarez, hoje Chave de Ouro, para comer barrado de manteiga nos degraus do pelourinho, em pleno Largo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Abaixo os Pobres



A minha formação política data de uma época em que a ideologia estava na base dos alinhamentos partidários e das militâncias.
O lado esquerdo era fustigado pela maré dos vários marxismos. O marxismo-leninismo ortodoxo com os seus três ramos principais, estalinista, trotzquista e maoísta. O marxismo revisionista do PCUS e dos partidos comunistas europeus pós estalinistas, e o socialismo de inspiração marxista dos partidos socialistas, com destaque para o francês de “notre ami Mitterrand”.
À direita imperava a democracia cristã, sustentada pelo personalismo de Emmanuel Mounier, pelas encíclicas papais destilando bençãos do Concílio Vaticano II, e pelo humanismo tomista de Jacques Maritain. Quanto aos xenófobos, racistas convictos, elitistas e nacionalistas, minavam a coberto do anonimato, uma vez que a demasiado recente Guerra Mundial e o Holocausto aconselhavam uma prudente espera antes de se assumirem publicamente.
No meio, debaixo de um chapéu de chuva vagamente liberal, ou social-democrata ou social-outra-coisa-qualquer, sempre muito pouco democrata e ainda menos social, apareciam trabalhistas, partidos populares, democratas, liberais e neo-liberais, apostando no governo das oligarquias financeiras esclarecidas dos banqueiros e outros capitalistas, mais ou menos intermediadas por modelos e chavões de cariz tecnocrático, defendendo um estado mínimo, que o mercado, fonte de toda a riqueza e de toda a equidade, se encarregaria da justiça social, do acesso à educação e à saúde, e da sobrevivência dos velhos.
Claro está que o mercado não se encarregou de nada disso. Como seria de esperar, o mercado limitou-se a funcionar de acordo com a sua natureza e a sua regra fundamental: dinheiro chama dinheiro.
A história tem demonstrado à saciedade que nem é destino dos pobres enriquecerem, nem é destino dos ricos empobrecerem.
Nos anos que se seguiram à minha formação deixou de se ouvir falar de materialismo dialético,de idealismo, de personalismo, e deixou igualmente de se ouvir falar de comunismo, de socialismo, de liberalismo e de fascismo, a não ser quando se queria chamar filho de puta a alguém.
Vivemos, por fim, num caldo democrático. A América é uma democracia. A China é outra. Israel outra, o Japão outra e Angola outra. Cuba está para entrar no clube, e já há sinais de a Coreia do Norte poder vir a figurar, nos próximos meses, entre as grandes democracias asiáticas, as democracias do Brunei, das Filipinas e de Taiwan.
Escusado será dizer, que em todos estes países, quem manda é Salazar. Nos Estados Unidos os americanos podem votar em toda a gente, desde que toda a gente seja os dois candidatos, republicano não-democrata e democrata não-republicano, que o Golden Sachs e o Morgan Chase e mais umas dúzias de patriotas, imbuídos do mais genuino “american dream-yes we can”, lá põem para a rapaziada votar.
Na China os chineses podem votar em toda a gente, desde que toda a gente seja o líder do Partido Comunista chinês, ele próprio tão liberal, que não teve dúvidas em abraçar o comunismo capitalista. Resta-nos agora esperar que a Coreia proclame o capitalismo comunista, uma espécie de capitalismo de massas, em que todos somos capitalistas, mesmo sem capital, uma coisa assim como as quotas a realizar, sustentada pela mais alargada democracia.
E é bem verdade que há que enaltecer esta democracia, cada vez mais alargada, para uns inventada por Plutarco, para outros por João Sem-Terra e para outros por Robespierre, da qual as populações da Síria e do Iraque, do Curdistão e do Afeganistão, da Venezuela e de Moçambique, para não falar na República Centro-Africana, todos os dias colhem os benefícios.
Pois não foi ela que permitiu que Eduardo dos Santos, um guerrilheiro pobre,se tornasse um magnata da finança mundial, tal como permitiu a Al Capone abandonar a pobre barbearia de Brooklin e estabelecer-se na South Prairie Avenue, de Chicago?
Que um pobre judeu russo, filho de uma família que habitava um pequeno apartamento do Estado, tenha hoje um iate e um Boeing 767? E o Chelsea?
A democracia tem estas generosidades inegáveis que testemunham bem que todos, se quisermos, podemos ter Boeings estacionados no quintal. Além de permitir, magnanimamente, que os ricos fiquem mais ricos, ainda selecciona ao acaso uns quantos pobres para se lhes juntarem. Lucky Luciano, J. P. Morgan, Sergei Mikhailov, Mark Sachs, que antes de se juntar a Morgan era vendedor ambulante de géneros numa carrocinha puxada por um macho nas ruas de Filadélfia?
Pode assim dizer-se que, esgotadas as ideologias, vivemos num mundo pragmático onde quem tem unhas é que toca viola, isto é, quem é rico ou nasceu com essa sagacidade única de transferir a riqueza para si próprio, criando-a, a partir do nada, com o seu engenho e trabalho árduo.
De tal forma que hoje só consigo encontrar uma definição de esquerda, que quer que os pobres vivam um pouco menos mal, ainda que os ricos possam viver um pouco menos bem, e de direita, que quer que os ricos tenham cada vez mais, ainda que os pobres tenham cada vez menos.
Quanto ao centro, nestes tempos modernos, vive na ansiedade permanente de saber para que lado cair e evitar erros empobrecedores, e vão assim oscilando sem se apartarem nunca do grande desígnio que nos une a todos: eliminar os pobres, nem que seja a tiro.
Francisco Rodrigues Pereira
Vila Franca de Xira, 3 de Outubro de 2018

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A Cidade dos Mortos




Durante alguns anos da minha vida, vivi a noite de Lisboa com constância e com a circunspecção que distingue os iniciados dos “amadores”, a quem falta sempre, no mínimo, desenvoltura.
Na verdade, gastava parte importante dos meus dias, entre a meia-noite e as cinco da madrugada, em deambulações obrigatórias por alguns bares e cabarets da cidade.
Em todas essas casas tinha garrafa devidamente etiquetada com o meu nome, requisito iniciático indispensável, e mesa com localização panorâmica, de onde observava com minúcia o desenrolar da noite.
Excluindo as casas de Fado, a que apenas ia excepcionalmente, retenho dois bares e uma “boîte” que eram, na época de 70, catedrais maiores da religião noctívaga e que eu frequentava com disciplinada assiduidade.
O primeiro deles, o Procópio, tem funcionado ininterruptamente nas mãos da família Pinto Coelho, ainda que agora sem a Alice, a quem os anos já não aconselham tão intensas madrugadas, sem o Solnado, sem a Fernanda Lapa, o Aventino Teixeira, capitão de Abril sempre à esquerda de todas as revoluções, o Zé Cardoso Pires, a Teresa Ricou, a Maria do Céu Guerra, o Nuno Brederode, o Zé Fonseca e Costa, o Júlio Pomar. A maioria porque desapareceu, outros, poucos, porque os outros desapareceram e não está lá ninguém.
O António, o mais jovem dos indefectíveis diários do Procópio (eu repartia-me ecléticamente por demasiadas tertúlias), cartonista, capa da Time, dotado de uma mão de excepção, ali ia todos os dias complementar a sua aprendizagem da vida e da arte com aqueles burgueses divertidos e bem-pensantes, a quem um anti-salazarismo atávico dava um verniz de esquerdas vermelhas, mais berrantes umas que outras. Não podia deixar, António de te fazer esta referência, pelo merecimento devido e pela amizade de mais de meio século, que te dedico.
Nos dias em que o Procópio não me atraía e me apetecia casa mais desafogada, rumava a outro templo da noite lisboeta, abrilhantado pelas especiarias intelectuais da poesia simbolista, da literatura filosófica, no mesmo limbo onde até aí haviam pairado a George Sand, o André Gide e o Jean Cocteau, da grande música e da alta política, tudo envolto nuns matizes ora surrealistas, ora de esquerdas aristocráticas, ora de modernismos hedonistas, aos quais a madurez ia juntando sensualidades decadentes.
Estou a falar do Botequim, à esquerda de quem sobe, vindo da Sé, já entrando no Largo da Graça, colina sobranceira à cidade, vizinhança do Torel.
O Botequim foi fundado por um grupo de mulheres. Natália Correia e Isabel Meyrelles, escritoras já com créditos firmados na época, conjuntamente com Júlia Marenha e Helena Roseta.
Por ali andaram António Sérgio, José Augusto-França e Mário Cesariny. Espero que estes nomes digam alguma coisa às novas gerações, porque se tratavam na verdade de luminares da cultura e da sociedade portuguesa.
Em noites de maior frenesim revolucionário, aparecia o Grupo dos Nove, com Melo Antunes à cabeça. E iam o David Mourão-Ferreira, íntimo entre os íntimos, a Eunice Muñoz, a Isabel de Castro e o Victorino d’Almeida.
O inefável Dórdio Guimarães, aspirante a realizador de cinema, que tentava distraír Natália da sua infindável viuvez de um marido-amante-pai que criara o Hotel Britannia e a criara a ela, era, braço-dado com o velho pianista, decoração incontornável do Botequim.
Ao bar da Graça fui levado um dia pelo Ivo Batoréo, figura da Lisboa de setenta, que não era músico, nem escritor, nem tinha conversas herméticas e cultas, mas que conhecia toda a gente e a quem toda a gente conhecia, nas suas calças castanhas, blazer de tweed beige, mel ou camelo, escolhido pelas alfaiatarias do Largo de São Paulo nos figurinos da Old Bond Street, irrepreensívelmente escanhoado e engravatado. Era irmão do Manuel Batoréo, chefe da redacção do Diário de Notícias do reviralho, e foi um marco importante na minha vida e um bom amigo. Também lhe devo uma referência especial, não só pelos carapaus assados na Márcia Condessa e pelas noitadas com o Marceneiro e a Mimela Cid, mas pela disponibilidade fraternal da sua companhia.
Chegado aqui, é forçoso partilhar convosco a minha convicção de que entre os bares daquele tempo e os de hoje há claras diferenças, quer no seu carácter, quer na sua função.
Eventualmente algumas das diferenças serão de perspectiva - passaram quatro décadas e duas revoluções, a do 25 de Abril e a da internet/telemóvel, que nos permite enfiar o mundo no bolso das calças. E outras diferenças virão da minha vista cansada, da degeneração que nos vai minando quando nos tornamos velhos.
Tenho no entanto o sentimento de que os bares modernos são sitios onde se está sózinho, ou então com outros exactamente iguais a nós. Eu explico.
O primeiro caso não passa de um encontro semanal ou quinzenal, marcado com a música, ou com o ruído, com o alcoól ou com o ambiente, com o preconceito da saída obrigatória e com uma certa ideia de lazer ou de prémio. E para ali estão quatro, cinco, seis horas, sem falarem nem precisarem de falar. E passam ao lado de quaquer veleidade de comunicação, de qualquer encontro com os outros, com excepção dos intermediados pela internet ou pelo telemóvel, passam ao lado de toda a apreensão do mundo e de si próprios, que depende sobretudo do encontro dialético com os outros.
E os outros, com quem (não) se encontram, não passam de réplicas, cópias iguaizinhas entre as quais se perdem e se diluem, numa cacafonia de ecos e discos riscados que repetem uma cifra primitiva. Ilhas desertas. Nenhuma diferença. Clones que nada têm para dar ou trocar, como a infantaria estática de terracota do túmulo do imperador Qim. Claro, há excepções. Perdidas na construção de um mundo informático, de um mundo cibernético que faz a regra, do mundo dos seres que, com a ajuda de um telemóvel, definitivamente metem o cosmos, e o seu lugar no cosmos, dentro do bolso.
Os bares de que vos falo, pelo contrário, eram as catedrais da diferença, do único, do embate criador do dissemelhante e do oposto, do inimitável. Foruns da troca e da dádiva, da magia da criação e da recriação de projectos e de protagonismos, das interpretações afectivas da acção cívica e politica, abertas ou emparedadas na dialética do grupo, aprendizagens da intervenção e da conspiração, entroncamento e resguardo de comboios perdidos e porto de embarque para os recomeços e para as descobertas. Remansos de fraternidades e de amores. Aperfeiçoamentos. Buscas. Aventura.
No limite, praças inconsequentes de faz-de-conta que tornavam a felicidade possível e davam uma emoção de futuro ao mais miserável dos presentes.
Ao Botequim continuei a ir, fazer horas, ouvir conversas, discutir Deus e o Nada.
Antes de passar para uma outra dimensão da cidade nocturna e etílica (tenho estado aqui a lutar com o demonstrativo dionisíaco, que acho demasiado helénico para uma cidade tão varina e de beira-rio como Lisboa), devo fazer uma obrigatória referência a um grupo de frequentadores dos bares da “movida” política e intelectual do último quartel do meu século. O grupo dos escritores-publicitários.
Na herança do Fernando Pessoa e da sua intervenção na publicidade – o Zé da Hora (mais tarde McCann Erikson-Hora), acabara de ganhar a conta da Coca-Cola – que se celebrizou no slogan “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”, que por infeliz intervenção do médico Ricardo Jorge nunca viu a luz do dia, todos os escritores da moda eram publicitários e iam aos bares.
Artur Portela (filho), na Ciesa: “Expresso. O jornal dos que sabem ler”, ou Alexandre O’Neil, na Plano ou na Cinevoz: “Há mar e mar, há ir e voltar”, para o Instituto de Socorros a Náufragos “Passe um Verão desafogado”, e as que não viram a luz do dia “Bosch é brom!”, “Lusospuma. Dá três e parece que deu uma”, ou Ary dos Santos: “Kart. Quilómetros de prazer”, “Sagres. A sede que se deseja.”, e o Luís de Stau Monteiro, e o Baptista Bastos...
A alegre vibração da criatividade brejeira, agora no bar, em noitadas de malícia e de risadas, em noites de interminável bom-humor. (era preciso bom humor para aguentar aquela malta e frequentar aqueles bares).
Passemos então, como prometido no início desta crónica, à “boîte”, ou boate.
Não era um bar de alterne, que isso supõe um relação de subalternidade das mulheres com os donos da casa, nem era um Cabaret, que para isso faltavam as “Variedades”, ou o “Show”, como se diz agora. Era um bar de mulheres da noite, acompanhantes-atracções-clientes.
De uma classe de bares que houve em Lisboa a que pertenceram o Nina, o Comodoro, o Tamila, a Cave, o Madrid, a Cova da Onça, a Gata, a Pantera, o Elefante Branco, o Sampayo, o Night and Day, enfim a geração de bares que se seguiu ao Olimpia, ao Fontória, ao Bico Dourado, ao Bolero, ao Ritz, ao Príncipe Negro, ao Diana, ao Maxime, aos bares do Cais do Sodré, do Intendente e do Bairro Alto, estes últimos para marinheiros, ardinas, faias e rufias.
O Hipopótamo, porque é dele que se trata, era um bar de engate (não seriam eles todos?). Ao falar dos seus frequentadores, ou de alguns que com mais frequência me cruzei, corro o risco de imperdoável indiscrição. Até porque se tratava de gente conhecida, com ligações à minha terra natal. No entanto, e para afastar pensamentos precipitados, devo dizer que grande número dos frequentadores não procurava “meninas”, mas antes copos tardios, uma vez que os outros bares e os restaurantes fechavam mais cedo, e procuravam o ambiente licencioso típico do cabaret, com os lamês, os vestidos de noite, os perfumes, os charutos, o champagne, a orquestra e a sedução.
Os meus conterrâneos saíam de Vila Franca, do “Maioral” de outros tempos, já dada a meia-noite e depois de um jantar bem regado e rematado por umas garrafas de Highland Queen destemperado com água Castello, direitos à António Augusto de Aguiar, esquina com a Fontes Pereira de Melo.
O elemento mais irrequieto do grupo, tirando o Teles “Cigano”, recentemente falecido, que divertia toda a gente, na sua diferença étnica e na sua graça natural, era sem dúvida D. José Zarco da Câmara (Ribeira Grande), Zé Ribeira para os amigos, e, com eles, primeirissimas figuras da região, quase todos criadores de gado bravo e agricultores por tradição familiar, os manos Borba, Júlio e Guilherme, inesquecível vara do ribatejo o primeiro, e notável equitador e criador de cavalos lusitanos, competente director da Escola Portuguesa de Arte Equestre, o segundo. “Nico” Palha, bisneto do lendário ganadero Palha Blanco, Antònio Vidal, Jorge Cambournac Tomás da Costa, Rodrigo da Cunha Rêgo, Chico Patrício, D. Luís Cabral da Câmara (Belmonte), que morava então à Rodrigo da Fonseca, e que eu acompanhei em tantos copos de fim de tarde, com o Zé Guilherme Alves, da Universidade Moderna, o Francisco Martins, meu conterrâneo e amigo fraterno de aventuras galantes e etílicas, e um simpático director da Guerin, o Bandeira de Lima.
O Hipopótamo inspirou o meu romance “O Negresco”, pelo que não me vou alongar. Lembro com saudades o Zé Maria, o mais elegante dos porteiros que eu conheci. Nem os hotéis de Mayfair, nem Nice, nem Viena, se podem gabar de possuírem tão majestoso e distinto porteiro, que competia com o mais generoso dos clientes nas atenções das “meninas”. Lembro o solícito Joaquim que não tirava os olhos do meu copo e tinha por programa de vida a minha sede. Lembro os olhos verdes da Inês e os longos cabelos negros da Cláudia, que caíam em ondas sobre os ombros, espraiando-se como um manto pelas costas nuas.
A par destas três catedrais, recordo com gratidão duas ermidas menores que, à semelhança da capela da Senhora da Saúde, foram lugar de peregrinação obrigatório daLisboa do meu tempo.
O Stress, do Fernando Teixeira, esse que estão a pensar, o das análises da Rodrigues Sampaio, o Mestre-maçon da Grande Loja Regular de Portugal e o aficionado patrono das revistas taurinas falidas. A meio da Alexandre Herculano, quase pegado aos Bombeiros dos bailes das matinés de Domingo, vizinhança do Hotel Dom Carlos onde Francisco van Zeller Palha, o da Adema, tio bisavô do ganadero João Folque, tinha quarto ao ano.
Pelo Stress, comigo, com o Ivo e as namoradas da Praia das Maçãs, cirandavam a Ivone Silva, a Mariema, a Ana Zanatti, acabadinhas de chegar da segunda sessão do ABC ou do Variedades, o Badaró, os grandes galãs da noite, o capitão Quesada, comandante insubornável da Brigada de Trânsito, o “Quito” Hipólito Raposo, o Cristiano de Freitas, Director Geral de Turismo, que para desespero do Ivo media cobiçosamente a “Baroa” no Belcanto, ainda sem garfos Michelin nem novos-ricos a fazerem bicha para dar beijinho ao Avilez, o Zé Manuel Guerra do Correio da Manhã, o Alçada Baptista e o infeliz José Júlio Pelouro da Costa (Lanzudo), que havia de explorar o Paris-Orly e o Ibéria, ao Chiado, a caminho do Grémio Literário, onde a Maria Paula martelava o piano numas fúrias reaccionárias, acompanhando a Leninha Mexia e as cançonetas que emporcalhavam a revolução dos cravos, com as letras ainda mais reaccionárias do Fernandinho Teixeira, o mesmíssimo, o das análises, que ela cantava com o mais doce sotaque alentejano, aplaudida até à histeria pelo Pinto “Maluco”, comandante da Armada na reserva e agente barulhento da Direita Silenciosa, que haveria de casar com a Anita Montalvão, que envergonhava o canhão da Nazaré e tinha um fraquinho pela sopa da ex-mulher do maestro Tavares Belo.
Subsistem bares com os mesmos nomes, nos mesmos sítios. Mas estes, de que eu falo, já não existem. Desapareceram com o desaparecimento dos seus frequentadores, gente que neles vivia uma importante parte da sua vida, para alguns a mais importante, onde consumiam o génio e o talento que a vida lhes dera, feitos da comunicação, da intimidade, do devaneio, da fidelidade, numa experiência diáriamente renovada, que o bar, complacente, acolhia, repetida porque sim ou para se sentirem vivos.